Introdução
O artigo que nos foi proposto é, evidentemente, amplo e bastante complexo. Não nos cabe nesse contexto, reproduzir o que outros já disseram a respeito. Com efeito, existe farta literatura, documentação, ensaios, pesquisas e artigos específicos abordando diferentes dimensões e variados enfoques sobre a relação entre os povos indígenas no Brasil e a ditadura militar pós 64, e a contribuição da igreja missionária naquele período. Talvez seja mais interessante oferecer o meu testemunho pessoal, do que vi, li e ouvi, embora, - quando da minha chegada ao Brasil, - não tivesse feito ainda a escolha formal de me dedicar à causa indígena, algo que aconteceu um pouco mais tarde, em 1983.
Afinal, eu cheguei a esse País em novembro de 1979 quando a política de ‘abertura lenta e progressiva’ por parte do governo do então presidente João Batista Figueiredo, o último general militar, havia sido iniciada, timidamente, alguns anos antes pelo seu ideólogo mais renomado, o chefe do gabinete da casa civil, general Golbery do Couto e Silva. Não podemos ignorar, também, que, mesmo com a chegada da democracia formal e a devolução do poder político-administrativo federal aos civis da ‘Nova República’, em 1985, a ‘política indigenista’ oficial permaneceu praticamente inalterada até a Constituição de 1988 e, mesmo após a sua publicação, não se pode ignorar as reiteradas e graves contradições que têm acompanhado até hoje a relação entre os povos indígenas e os diferentes governos que se sucederam. Sem falar que uma mudança formal de sistema de governo não significa automática e imediatamente uma mudança metodológica, relacional e de consciência por parte dos diferentes atores sociais.
Nesse sentido queria deixar claro que não existe em mim a preocupação de ‘comprovar histórica e bibliograficamente’ o que colocarei aqui como uma simples ‘memória e testemunho’ do que direta e indiretamente tenho presenciado nesse tema espinhoso ao longo desses anos. Considero importante perceber que, afinal, o que está em jogo não é a mera interpretação ou análise de uma página sombria de um passado não tão distante e sim, rever, hoje, a nossa postura ética e política perante povos culturalmente diferenciados que, embora existindo e persistindo numa democracia, supostamente, madura, continuam a sofrer discriminação, invisibilidade e atentados de toda ordem. A nossa atenção e vigilância não podem arrefecer, pois, ‘golpes’ contra eles e contra seus parceiros são planejados a toda hora não somente por saudosistas golpistas, mas também por aqueles que se autodenominam ‘democratas’!
PRIMEIRA PARTE
Não podemos imaginar que os militares que assumiram o poder em 64 e implantaram um regime autoritário-ditatorial tivessem herdado uma política indigenista profundamente respeitosa dos direitos indígenas e que, consequentemente, houvesse necessidade de a refundar integralmente. A política indigenista oficial já se encontrava bastante deteriorada de forma que os novos governantes militares acharam que era o momento histórico propício para apagar de um lado os resquícios de um determinado indigenismo tradicional, positivista, inspirado no Marechal Cândido Rondon que, - mesmo de forma contraditória, defendia a ‘existência e a alteridade’ dos povos indígenas, - e, do outro lado, promover outros modelos de indigenismo, mas, agora, sob a lógica do ‘neodesenvolvimentismo autoritário’. Uma nova e aguerrida empreitada econômica que não deixava de fora nenhum pedacinho do imenso território nacional com seus inúmeros e ainda desconhecidos recursos naturais. No meu modo de ver, aqui reside a primeira característica do regime militar pós-golpe com relação ao seu trato sociopolítico com os povos indígenas. Lembro-me com bastante nitidez já nos primeiros meses em São Paulo, já escolástico, através de leituras de jornais e revistas especializadas como era ainda muito forte a ideia de que a ‘Amazônia’ era um território sem gente, um ‘vácuo demográfico’, e que era estrategicamente urgente e importante para o ‘gigante adormecido’ integrar também e, talvez, sobretudo, aquela importante região tão rica em água doce, madeira, minérios, e biomas de todo tipo. No nosso trabalho pastoral no Parque Santa Madalena lembro-me que conheci pessoas ligadas à compra e venda de madeira nobre para a construção civil e para a exportação. Na época, os irmãos de um catequista me diziam que a madeira da loja da família provinha de uma longínqua cidade do Maranhão, Imperatriz, totalmente desconhecida por mim. Vim a descobrir mais tarde que a extração daquela madeira nobre se situava na Reserva biológica do Gurupi e nas terras ainda não demarcadas dos povos Awá-Guajá, Ka’apor e Tembé.
Desenvolver, crescer, investir, exportar havia se tornado uma febre nacional; afinal, a lógica econômica subjacente naquela época era aquela ditada e propagandeada pelo poderoso ministro da Fazenda, Delfim Neto, segundo a qual era preciso, primeiramente, ‘deixar o bolo crescer’ para, somente depois, reparti-lo entre todos. Ficava patente, desde logo, que não seria por causa de ‘insignificantes grupinhos de índios sentados sobre jazidas de minério estratégico’ que o País iria se deter na sua vocação de ‘gigante econômico’. Infelizmente, já no começo dos anos 80 o bolo não vinha crescendo conforme o esperado e, pior, dava claros sinais de que já havia sido apropriado só por alguns. O fato é que a década de 80 no Brasil foi considerada desde um ponto de vista econômico uma ‘década perdida’.
É nessa nova aposta governamental de integrar o País, crescer, preencher vácuos demográficos, investir na abertura de novas rodovias, hidrelétricas e outras pérolas mais, sem algum debate nacional e sem algum tipo de preocupação com eventuais impactos sobre as populações indígenas propositalmente ‘ignoradas e invisibilizadas’ que aparecem as primeiras denúncias de massacres, abusos, violência, extermínio, deportações e internações de indígenas e de comunidades inteiras. No início dos anos 80, já estando eu a trabalhar com os índios Ka’apor e Awá, conheci o famoso antropólogo e, à época, consultor do BID, Shelton Davis, autor do livro ‘As vítimas do milagre’. No seu livro-documento relata não somente a lógica, os impactos dos grandes empreendimentos econômicos promovidos pelo regime militar, na Amazônia, (rodovia Transamazônica em 1970) e quem realmente se beneficiou, mas também suas vítimas, expondo os casos terrificantes das atrocidades cometidas contra os povos indígenas, principalmente, os Waimiri-Atroari.
O relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amazonas identificou nomes de mais de 2 mil indivíduos do povo Waimiri-Atroari assassinados, entre 1972 e 1977, na ocasião da abertura da rodovia BR174, que conecta Manaus a Boa Vista. Tudo isso veio à tona em 1968 com a divulgação dos resultados das investigações feitas pelo procurador Jair de Figueiredo Correia, documento que ficou conhecido como Relatório Figueiredo. A Comissão Nacional da Verdade, em 2014, apontou a inclusão de dez etnias indígenas entre as vítimas das violações de direitos humanos no regime militar. Segundo o relatório, de 1964 a 1985, 8.350 indígenas foram mortos em massacres, roubo de terras, remoções forçadas dos territórios, prisões, torturas e maus-tratos. Todas essas denúncias ultrapassaram as fronteiras brasileiras por meio da ação de ativistas, acadêmicos, jornalistas, exilados, missionários, entre outros, tornando-se um dos grandes desafios para o governo militar. Como consequência disso a junta militar extinguiu o antigo órgão indigenista, o SPI (Serviço Proteção Indígena) e criou a Funai em 1967. Um novo nome para limpar a sua ficha junto à comunidade internacional que o pressionava, mas deixando, afinal, as mesmas práticas anteriores onde o indígena, no fundo, continuava sendo bestializado e visto como ‘não gente, preguiçoso, bárbaro, improdutivo e um permanente estorvo ao crescimento econômico e civilizacional’. Esta desumanização perseguia, inclusive, populações como a cabocla, considerada meio indígena.
Lembro-me outra característica que chamava a minha atenção no final da década de 70 e era a onipresença da ‘Doutrina de Segurança Nacional’ que permeava todo o tecido social e político do Brasil. Inclusive, naquele período conjuntural, estavam sendo deflagradas as primeiras grandes greves dos metalúrgicos do ABC, tendo Lula como líder. Quando foi determinada a prisão da diretoria do Sindicato de São Bernardo e Santo André a motivação foi ‘grave atentado à segurança nacional’. Isto valia com maior razão na problemática que envolvia a relação com os povos indígenas, principalmente por 2 grandes motivos:
1. A militarização das faixas de fronteira. A presença difusa de numerosas populações indígenas, embora não populosas, espalhadas ao longo de 6.500 km. de fronteira, sem infraestruturas, presença militar ostensiva, numa região nevrálgica como a região Norte, - considerada fundamental para assegurar a soberania nacional, - exigia uma maior e mais maciça presença do estado. O Projeto Calha Norte que foi criado em 1985 pelo governo Sarney veio a dar continuidade e a consagrar essa mesma preocupação de caráter mais militar, de ocupação dessa imensa e variada faixa fronteiriça, inclusive contratando números indígenas para fazer parte das forças armadas locais. Todo esse processo de militarização em nome da salvaguarda da soberania provocou não poucos problemas para aquelas populações. Houve, na época, muitas denúncias de casos de agressão e violência sexual contra mulheres indígenas por parte de militares, entre outras.
2. O pavor patológico do regime de que os povos indígenas se transformassem em ‘nações indígenas’. Pela lógica da segurança nacional havia também o medo de que essas etnias poderiam, um dia se transformar em ‘nações indígenas’, reivindicando independência ou sendo berço acolhedor de quem reivindicasse desligamento político da única grande nação brasileira. Não se pode esquecer que a segurança era o eixo central que sustentava a legitimidade do regime de “democracia autoritária”, imposta pelos militares com a conivência das elites econômicas em 1964. Os generais brasileiros entendiam o mundo, em geral, e o Brasil em particular, como um conflito ideológico que introduzia o país numa guerra cotidiana. Nestes lugares, o índio, passou a formar parte daqueles grupos populacionais que, potencialmente, podiam apoiar seus antagonistas ideológicos. Lembro bem que ainda no início dos anos 80 o próprio CIMI era, habitualmente, investigado como um foco de ‘comunismo de especial perigo’, mas também eram considerados como tais e, portanto, vigiados, muitos pesquisadores e periodistas, inclusive alguns servidores da FUNAI que apoiaram abertamente o livre direito de reunião das lideranças indígenas.
3. Uma terceira característica que se evidenciava à época, que continua extremamente atual e que acende ainda hoje um debate acalorado quando não agressivo, - embora superada desde um ponto de vista do direito formal, - é a questão bastante ampla e complexa que diz respeito à perspectiva de o indígena poder vir a ser ‘assimilado/integrado’ à sociedade nacional como ‘um qualquer entre seus pares’. Nesse sentido, diluído culturalmente e sem identidade definida, ele perderia o direito de ocupar e usufruir ‘das terras extensas que ele mesmo não sabe explorar direito’ e, ainda, se ‘sentir política e moralmente obrigado a congelar a sua cultura’ mesmo diante das mudanças radicais que têm ocorrido. Quando iniciei a trabalhar no CIMI era muito forte a ideia de ‘emancipar os índios’ e serem ‘integrados à sociedade nacional’ onde a palavra integração não indicava um auspicável diálogo pluricultural com o outro e sim, uma clara tentativa de assmilação/absorção à ‘civilização nacional’ esvaziando sua identidade, história e cultura específicas.
A questão da emancipação havia sido proposta pelo ministro do Interior Rangel Reis, em 1978, e foi ressurgida pelo presidente da FUNAI, Nobre da Veiga, em 1981. Nesta iniciativa que pretendia fechar a questão indígena definitivamente, podem-se achar características comuns ao conflito, assim como à ideologia dominante no Estado e na elite brasileira. O medo que havia nas terras indígenas nas faixas fronteiriças com outros países ou as pressões para que toda discussão sobre terras indígenas passasse por um Conselho Nacional de Segurança, criaram a imagem do índio como uma permanente ameaça à segurança nacional, que dificilmente conseguia esconder certos interesses e pressões dos diferentes grupos econômicos e de poder, e sua projeção sobre as terras indígenas.
Ao se consumar esse plano de assimilação/emancipação o estado sentir-se-ia livre para não ter que implementar políticas especificas e, principalmente, o dever de assegurar territórios adequados como habitat étnico-cultural. Abriria, assim, as portas para novos processos de exploração e, para garantir a existência indígena, o estado doaria aos índios ‘lotes familiares de terra como um qualquer anônimo camponês da região’. O regime militar tentou de toda forma implementar tudo isso tendo o claro apoio daquele extenso exército de lavradores expulsos de suas terras, outros manipulados e utilizados por fazendeiros para abrir pastagens, ou por madeireiros, garimpeiros e empresas mineradoras que acreditavam firmemente no lema ‘muita terra para pouco índio’. Seja o estado, bem como esses setores da sociedade, embora por diferentes motivos, se juntavam para combater a existência/permanência das populações indígenas que, afinal, todos eles os viam como obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento, ao passo que, eles também, poderiam participar para fazer crescer o bolo, desde que abrissem mão de seus imensos territórios e da ‘conservação de arcaicos costumes que jamais os transformariam em cidadãos úteis e produtivos para a nação’. Não é difícil compreender a atualidade de tal pensamento aos nossos dias, principalmente quando aparecem presidentes da República que em nome de um renovado desenvolvimento e de inéditas oportunidades, supostamente ‘para todos’, estimula inúmeras lideranças indígenas a se transformarem ‘ipso facto’ em potenciais empresários da soja ou micro-empresários no agronegócio, mas dentro de suas próprias terras indígenas e em parceria com o capital privado...
Uma última característica relacionada à anterior e que revela a concepção que o regime militar possuia com relação aos indígenas nos aparece de forma clara quando da criação da FUNAI, e que revela um subjacente racismo e um profundo pessimismo quanto ao valor intrínseco das populações indígenas. A FUNAI de que já acenamos, anteriormente, foi criada sob a premissa do relacionamento desigual entre o indígena e o Estado. A instituição tratou o indígena, oficialmente, como um ser passivo e primitivo, um incapaz que tinha que depender da tutela estatal não só para sobreviver, mas também para se desenvolver “corretamente”. Esta institucionalização do ‘racismo governamental’ respondia, de certa forma, ao racismo difuso que se aninhava na alma do Brasil. A legislação da qual nasceu a FUNAI (Lei nº 5.371, 5 de dezembro 1967) constatava essa situação ao estabelecer uma dominação prática e legislativa sobre o índio, que não dava a ele o direito de negociar ou se opor. Por isso, pode-se comprovar porque a FUNAI teve um caráter policial e arbitral entre os povos nativos. Não só com eles, mas também na regulação e na permissão de entradas e saídas de missionários, pesquisadores, antropólogos. Só lembrar, por exemplo, que até poucos anos atrás um missionário estrangeiro que vinha trabalhar ao Brasil para obter o visto tinha que declarar que não iria trabalhar entre as comunidades indígenas. Este marco jurídico da FUNAI foi ratificado e ampliado na sua concepção racista e de dominação com o Estatuto do Índio de 1973 que manteve um respeito aparente à normativa internacional antirracista e de apoio aos povos indígenas, mas que escondia os mecanismos necessários para continuar com as lógicas tradicionais de dominação. “O índio para a FUNAI – disse o presidente da Instituição Bandeira de Mello em maio de 1971 – é um ser humano, filho de Deus e digno de todo respeito, estimulo e dedicação. A ele deverão ser dados todos os implementos morais, econômicos e sociais para que dentro de prazo flexível ele possa integrar-se ao mundo civilizado”. Esta visão e prática melhorou bastante a partir dos anos 90, pelo menos formalmente, para voltar de forma escrachada no deletério governo Bolsonaro em que os Coordenadores Regionais da Funai eram todos militares que comungavam ainda da arcaica e inconstitucional visão do índio como selvagem a ser assimilado à comunidade nacional e, possivelmente como empreendedor e parceiro subalterno de negócios com empresas particulares.
Terrificante nessa relação entre Regime militar e populações indígenas é que os militares não somente permitiram e apoiaram aqueles indivíduos e/ou empresas nacionais e multinacionais desejosas de assaltar territórios e patrimônios indígenas construindo infraestruturas e legislando em favor desses notórios assaltantes, mas participou diretamente nas espoliações formais, através de claros atos de corrupção, manipulação, extorsão de seus funcionários públicos, nas diferentes administrações federais espalhadas no território nacional. Portanto, não foi somente cúmplice, mas autor de crimes! Não há de se estranhar, também, como ao longo do período da ditadura, e mesmo após ela, ninguém de quem cometeu comprovadamente graves crimes contra os indígenas foi punido. No máximo, houve exoneração de seus cargos. Além disso, diga-se que, apesar do enorme volume de denúncias contra o regime e as pressões exercidas por instituições nacionais e governos internacionais, não impediram que o regime militar apressasse uma espécie de conciliação histórica com as populações indígenas. Ele seguiu bastante imperturbável o seu plano de execução de grandes projetos e apoiando práticas ilícitas de pesquisa e garimpagem de todo tipo em terras indígenas, sem se importar, excessivamente, de seus impactos ambientais e sociais. Atrevo-me, até, a dizer que essa herança maldita feita de relações assimétricas, racistas, desiguais, o assim chamado ‘entulho autoritário do regime militar’ vem permeando, embora com algumas variações, os vários governos que se sucederam ao longo desses 60 anos, independentemente de seus espectros político-ideológicos, de direita ou de esquerda. Basta lembrar, por exemplo, que a Constituição Federal de 1988 que prevê a demarcação definitiva de todas as terras indígenas do Brasil no prazo de 5 anos, até hoje não foi cumprida por nenhum governo dito democrático. E, na atual conjuntura parlamentar, extremamente desfavorável aos povos indígenas, ressuscitam-se delírios jurídicos como o marco temporal para que de um lado não se demarque ‘um milímetro a mais de terra indígena’ daquela que era reconhecida em 1988, e do outro, se permita que empresas e facções continuem a assaltar um rico patrimônio que, afinal, é de propriedade da União, sendo que aos indígenas só cabe o seu usufruto.
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