Uma premissa se faz necessária, a saber: a narrativa da paixão e morte de Jesus é estritamente teológica e catequética. Não há como tomá-la como base fidedigna para dados e informações históricas. Por outro lado, não podemos, tampouco, descartar integralmente tudo o que acolá é descrito e narrado. Em outras palavras, mesmo não tendo garantia cientifica da exatidão dos acontecimentos, dos ditos e fatos narrados nos quatro evangelhos é possível colher, ‘grosso modo’ o clima de fundo e o entrelaçar-se de conspirações, armadilhas, subterfúgios e traições que marcaram os últimos dias de Jesus. Um aparte merece ser reservado, hoje, - a partir da leitura do evangelho proposta pela liturgia (Mt. 26,14-25), - ao papel do apóstolo Judas Iscariotes. Muito se tem escrito e especulado sobre o movente da sua suposta traição ao Mestre de Nazaré. Proponho, com muita liberdade e sem pretensões de cientificidade histórica a minha humilde interpretação, a partir do que ocorre no nosso cotidiano de humanos...
Ouso acreditar que o apóstolo Judas, traiu Jesus por ter sido, no fundo, ludibriado e traído por Ele. Jesus escolheu Judas para fazer parte do seu grupo porque certamente viu qualidades dignas de um apóstolo-seguidor do Seu grupo e da Sua causa. Judas não era uma pessoa anônima e sem expressão. Não há como duvidar que os dois devessem ter tido a possibilidade de se conhecer bastante, e trocar ideias sobre o presente e o futuro da nação Israel e o que poderia ser feito a respeito. Não temos porque duvidar quanto à clareza fundamental da exposição de motivos e de objetivos por parte de Jesus e que iriam nortear as ações do grupo do Rabi. Tampouco, não temos motivos para duvidar da capacidade de compreender e aceitar o todo por parte de Judas. Algo deve ter se quebrado na relação entre os dois ao longo da breve convivência...
Conhecendo, embora superficialmente, as origens e as expectativas ocultas de Judas Iscariotes, - um proativo zeloso (zelota) da integridade e da soberania de Israel, pelo que sabemos – ele deve ter intuído, progressivamente, o evidente distanciamento de Jesus em adotar, claramente, a estratégia de confronto direto, radical e armado contra os romanos, principalmente, que Judas imaginava, desejava e esperava. Poderíamos dizer que Judas se decepcionou com Jesus por Ele ter se desviado do seu original objetivo que era ‘reconstruir o novo Israel’ e implementar ‘a governança de Deus’, e não a dos romanos. Judas alimentou dentro de si, - mesmo sem ter tido, sinais evidentes para confirmá-lo, - expectativas sociopolíticas que não foram atendidas pelo Mestre. A decepção psicológica que cria um forte sentimento de frustração ocorre quando idealizamos, sobremaneira, o outro. Quando, de forma acrítica, o colocamos num pedestal alto demais, esquecendo-nos que o outro também é humano, falho, frágil e que pode fazer escolhas que, para nós, parecem incompreensíveis, mas que, não por isso, se tornam ilegítimas. É difícil comprovar tal hipótese, mas me parece não totalmente descabida. É só analisar o nosso comportamento no nosso cotidiano, nas nossas relações interpessoais onde de forma consciente ou inconsciente projetamos no outro expectativas, qualidades, sonhos que, fundamentalmente são nossos, e não dele! Sem falar no fato de que numa relação nunca é uma pessoa só que muda, ou seja, o outro pode ter mudado demais em relação àquilo que aparentava ou afirmava inicialmente, mas certamente, nós também, na convivência acabamos ‘forçando a barra’ para que o outro se encaixe nos nossos esquemas e categorias.
E, como muitas vezes ocorre numa relação amorosa um tanto neurótica, quando um grande amor se sente traído desponta o desejo insano de ‘destruí-lo’. Judas, certamente, amou e admirou, sobremaneira, Jesus, a ponto de querer destruí-lo quando teve a percepção subjetiva de que o Rabi havia distorcido tudo e se desviado do seu projeto original de ‘instaurar um novo reinado’ que, tragicamente, naqueles dias, em Jerusalém, já estava fadado ao fracasso.
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