Queiramos ou não no nosso dia a dia atuamos como intolerantes e cruéis crucificadores de pessoas. E, simultaneamente, podemos fazer a experiência de sermos ou sentirmos que nós mesmos somos crucificados, quando somos vítimas do ódio e da brutalidade alheia. Este aparente paradoxo o carregamos dentro de nós, como um fardo pesado e quase maldito de culturas milenares que reproduzimos e alimentamos. Como se fosse algo inato, próprio da natureza biológica hominídea. Às vezes, parece que a nossa capacidade de controlar e dominar impulsos destrutivos, e de analisar e disciplinar comportamentos e decisões, nos ofereça a ilusão de superar esse binômio crucificador-crucificado, mas, afinal, mais uma vez, constatamos que nossas recaídas se tornam sempre mais frequentes. Acabamos, no fim, aceitando essa contradição existencial aparentemente estruturante do nosso ser social.
A Semana Santa que estamos a iniciar parece reproduzir ‘ad infinitum’ e, até, fortalecer a visão-prática binária crucificador-crucificado. No entanto, ela deveria, na realidade, nos oferecer uma visão-prática diametralmente oposta. A dinâmica das celebrações e os conteúdos próprios previstos nas celebrações, longe de conformar as pessoas em acolher quase que fatalmente a indissociável coexistência na mesma e única pessoa de um ser crucificador e de um ser crucificado, nos convida, ao contrário, a desvendar e a desmascarar quem são, hoje, de fato, os verdadeiros crucificadores com capacidade de produzir, estender e multiplicar morte, sofrimento, dor, destruição em grande escala. Não se trata, portanto, de negar que dentro da mesma pessoa existem obvias contradições, e uma inegável coexistência entre energias positivas e outras negativas, mas de identificar, isso sim, quem adquiriu força e poder de grande porte para canalizar energias destrutivas e cooptar mais pessoas para serem soldados subalternos a serviço da morte, da intolerância, do ódio como um verdadeiro ideal de vida, ou uma espécie de filosofia-espiritualidade que motiva e desperta para o ativismo espiritual destruidor, maléfico, crucificador de vidas. Concretamente, a semana santa deveria nos tornar mais perspicazes em identificar e combater os Pilatos, os Herodes, o Sinédrio, e setores da massa alienada e sedenta de sangue. Diante dos terríveis extremismos e polarizações inegáveis dentro da própria igreja, não há mais espaço para celebrar a semana santa de forma intimista e devocional. Com efeito, há no seu seio grupos de batizados que fazem verdadeiras cruzadas para ‘crucificar’ aqueles que já não chamam de irmãos ou amigos, e sim de hereges, comunistas, cismáticos heterodoxos. São aqueles falsos seguidores de Jesus que não aceitam o Crucificado derrotado e humilhado de Nazaré que praticava, compreensão, tolerância, compaixão. Eles são verdadeiros soldados de um exército que está permanentemente pronto a deflagrar verdadeiras batalhas espirituais em nome de um projeto político conservador e violento em que a reencarnação de Pilatos, Herodes, sumos sacerdotes e extremistas da massa alienada entraram em suas mentes e corações, dominando e manipulando. Não há como não ver neles, hoje, a ação assassina dos crucificadores de ontem.
Não há mais como contemplar no Crucificado inerme, solitário, abandonado de ontem os crucificados de hoje espalhados pelos cinco continentes. Muitos deles, mesmo perseguidos e caluniados teimam em construir e tecer pequenas e aparentemente frágeis redes de resistência e solidariedade. São dignos continuadores da inconformidade daquelas poucas mulheres que teimavam ir ao sepulcro, acreditando que, um dia, aquele lugar de morte, sem o cadáver do crucificado, iria emanar uma luz e uma esperança jamais imaginada! Continuemos a ser ‘pacíficos combatentes’. de uma ‘causa vencida’!
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