Em geral na quinta-feira santa ao comentar a ‘ultima ceia’ costuma-se repetir e reproduzir conteúdos e informações adquiridas pela catequese tradicional e respaldadas pela teologia clássica. De tanto que são repetidas acabam se tornando um suprassumo um tanto mistificado de supostas ‘verdades históricas e teológicas inquestionáveis’. Daí a importância de recuperar, - lá onde é possível, - a informação histórica minimamente consensual, e de deduzir pelas práticas, costumes e tradições da época de Jesus uma narrativa verossímil......
1. João situa a última ceia no contexto da páscoa hebraica, fazendo-a coincidir. Isso é revelador, pois com isso ele quer nos dizer que a páscoa hebraica a partir daquele momento deve ser substituída pela 'Páscoa de Jesus'. É um claro abandono de uma prática centenária ou, dito de forma mais leve, um complemento essencial à 'velha páscoa'. Novo conteúdo, nova prática!
3. João nos informa que no contexto da ceia pascal Jesus, a uma certa altura, levantou, cingiu-se com uma toalha, colocou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, cumprindo, assim, a tarefa típica dos escravos. O que está por trás disso, e qual, afinal, o seu contexto? Não há nenhuma reprimenda de ordem moral! O pano de fundo era a recorrente e insidiosa disputa dentro do grupo de ‘quem seria o maior’. O que se encontra em outros contextos nos demais evangelhos, em João é encaixado no contexto de ‘ceia-banquete derradeiro’. Afinal, ao redor da mesma mesa, onde todos comem no mesmo prato, não há espaço para lugares e cargos de destaque. Está aí o surgimento de uma estrutura socioeclesial despida de qualquer anseio de caráter hierárquico. Nesse sentido, podemos compreender, então, o porquê da escolha do pão por parte de Jesus para assegurar a sua presença, e não do cordeiro, como a tradição mandava....
4. Jesus não celebra a Páscoa oferecendo o cordeiro sem mancha para ser comido! Para João, evidentemente, o próprio Jesus era o cordeiro. Mas isso é insuficiente para compreender essa escolha. Há uma motivação de fundo extremamente polêmica: os cordeiros sem defeitos e reconhecidos aptos para serem sacrificados - pelo menos no templo - provinham todos das criações do sumo sacerdote que detinha o seu monopólio, como sabe-se, hoje, pelos estudos historiográficos. Além disso, o cordeiro a ser consumido na ceia pascal na sua própria divisão e distribuição era uma fonte permanente de discriminação, pois os melhores e mais tenros pedaços eram reservados aos sacerdotes ou personalidades de destaque como previsto no antigo testamento. Jesus escolhe pão, algo carregado de densa simbologia e que sinaliza, de imediato, igualdade. Afinal, é a mesma qualidade e o mesmo sabor para todos os que dele se alimentam. O pão é mais um elemento que inibe a formação de estratificações, de vantagens e de privilégios numa possível e inaceitável estrutura hierárquica. Do ‘menor ao maior’ todos se alimentam do mesmo pão! Todos somos servidores, indistintamente, mesmo que o serviço a ser realizado seja qualitativamente diferente. Jamais poderá se sentir superior ao outro! Traição, portanto, é renunciar ao serviço e ambicionar poder e privilégios! Traição é acumular o pão e deixar de distribui-lo.
5. Outro elemento que frequentemente é ignorado é de que o ‘evento ceia’ transcorre não seguindo o ritmo típico de um rito, mas o ritmo de uma ‘atividade doméstico-familiar’. A ceia não se dá num templo, supostamente o lugar sagrado propício para agradar e louvar Deus e, além disso, coordenado por uma elite sacerdotal especializada, mas numa casa particular. Uma casa, inclusive, anônima, talvez para sinalizar que pode-se ‘celebrar, consagrar, servir, partilhar’ na casa de qualquer um de nós, ou seja, de todos!
6. O grupo de Jesus não se dispõe ao redor de um altar, - espaço próprio para executar o sacrifício liturgicamente adequado, - mas numa mesa, no lugar próprio da comunhão e da partilha existencial fraterna e familiar. Nesse sentido Jesus passa o limite que separa o sagrado do profano. A Páscoa de Jesus irrompe no cotidiano e se torna ação transformadora permanente e não rito litúrgico pontual num espaço supostamente adequado. Acabou a época dos sacrifícios e oblações e se inaugura a época do pão repartido, para todos e de forma igualitária e fraterna, sem exclusões e sem condições.
7. Outro elemento que é sistematicamente ‘distorcido’ no seu ‘significado’ é o cálice de vinho’. João que apresenta Jesus como o novo Moisés o diferencia, substantivamente, do grande legislador. Moisés aspergiu com o sangue do cordeiro o povo, Jesus oferece o vinho da alegria, do amor fiel e radical. O vinho que os noivos tomavam, solenemente, no dia do casamento-aliança era a demonstração irrefutável do seu recíproco compromisso de se amar até o fim, até o derramamento de seu sangue para preservar a vida do amado/a. A nova aliança em Jesus não se dá a partir da obediência a leis e normas ‘sacerdotais’, - como ocorria no antigo testamento, mas é alicerçada no amor recíproco, no cuidado ao outro/a. É um amor tão grande que a pessoa se dispõe a derramar o próprio sangue para que o outro, o amado/a, viva! É a instituição do martírio, do testemunho radical.
A última ceia nos diz em claras letras que o discípulo de Jesus não pode ser um mero freguês ritualista, cumpridor de preceitos litúrgicos, e sim um ‘ativista eucarístico’, o tempo todo, em todos os espaços, e em todas as circunstâncias. Isso possa ajudar aqueles defensores empedernidos e cultores doentios da lisura/pureza litúrgico-ritual: a mudança de uma palavra por um seu sinônimo, nas ‘palavras da consagração’, por exemplo, não invalida o sacramento, nem nulifica a graça, porque eucaristia é uma ação transformadora continuada, permanente, pautada pelo amor que alimenta, serve e protege pessoas dentro e fora do rito!
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