Dentro de poucos dias celebrar-se-á o primeiro aniversário da entrega de 312 casas no Piquiá da Conquista, Açailândia. São as moradias destinadas a acolher aquelas famílias que tiveram que se transferir de Piquiá de Baixo, em virtude dos altos níveis de poluição que vinham atormentando e secando muitas vidas humanas. A ‘conquista’ das residências e de um espaço sociogeográfico de qualidade vem a coroar um paciente e competente processo de tomada de consciência, de articulação e de mobilização em diferentes direções e dimensões, e encabeçada por um grupo significativo de populares de Piquiá de Baixo, e dos Missionários Combonianos de Piquiá.
Como não existem lutas populares lineares e homogêneas, livres de contradição, muitos pequenos conflitos de toda ordem têm permanecido latentes, - alimentados por sentimentos de confiança, esperança, tenacidade, disposição, misturados com sentimentos de descrença, de desconfiança, de disputas, de ciúme como ocorre em sociedades humanas, - mas jamais eclodidos de forma patente, de modo a ameaçar o todo. Entretanto, não se podia ignorar, desde os primórdios da luta social que, mais cedo ou mais tarde, alguém iria pedir a conta. E isto vem se verificando aos nossos dias. São pessoas e/ou pequenos grupos de famílias que ao não se sentirem contemplados com as novas moradias, por diferentes motivos, - inclusive o fato de não terem se cadastrado, à época, por não terem acreditado que um dia o sonho poderia ser realizado, ou, atualmente, por não aceitarem a remoção a outro local diferente do desejado/esperado - não se conformam com uma ‘exclusão’ que consideram ilegítima e geram um não desprezível desgaste social.
Na atualidade, em que pese a entrega das 312 moradias, não se pode ignorar que permanecem postos no intrincado tabuleiro socioambiental de Piquiá alguns desafios que exigem ser enfrentados com urgência e firmeza, a saber:
a. Tentar mediar e persuadir as cerca de 60 famílias que não foram contempladas por diferentes e justos motivos com uma casa em Piquiá da Conquista a aceitar um local já identificado; sem falar naquelas que apareceram, de última hora, tentando se aproveitar do ‘imbróglio’. Em outras palavras, peitar com rigor quantos vêm tentando ocupar terrenos/lotes para construir ilegalmente suas casas naquele espaço /ambiente social denominado Piquiá da Conquista;
b. Levantar, identificar e punir pessoas e famílias que ‘venderam, alugaram ou repassaram’ de forma sorrateira e ilegal suas novas moradias a outrem, algo não permitido por óbvios motivos;
d. Dar um novo destino e sentido ao que sobrou de Piquiá de Baixo, mantendo viva de um lado a memória histórico-afetiva daquele espaço e, do outro, garantir que outras novas famílias não voltem a ocupar aquele espaço. O mesmo deveria acontecer com as empresas próximas, e/ou próprio poder municipal para que não transformem Piquiá de Baixo numa ‘terra arrasada’ e aquele lenço de terra no seu novo ‘quintal’;
e. Enquanto os olhares permanecem apontados para Piquiá da Conquista, o setor urbano conhecido como Piquiá de Cima, permanece vítima de um dos maiores processos de poluição atmosférica, em que pese a propaganda oficial das empresas siderúrgicas. O pó de ferro, mais fino e mais intenso, que é dispersado pelo ar a partir dos depósitos de minério que se encontram nos pátios, - em virtude da movimentação de carga e descarga a céu aberto, associado à fumaça de numerosos fornos de produção de carvão vegetal, - contribuem para que o desafio de despoluir a região continue sendo árduo e urgente;
f. Como tentar reforçar e/ou reconstruir a ‘cola social’ que se de um lado fortaleceu alguns setores da comunidade social de Piquiá da Conquista, do outro lado, a aparente vitória social (novas casas) parece não estar atuando como cimento social, na tentativa de impedir abusos e pequenas arbitrariedades na convivência social.
Esses são só alguns dos principais desafios socioambientais que nos parecem se sobressair na atualidade em Piquiá da Conquista.
Muito se escreveu a respeito de tudo isso, inclusive sobre os impactos da siderurgia na região, os caminhos tortuosos e lerdos da Justiça, as mediações e pressões para encontrar um terreno adequado para o reassentamento, as interferências dos poderes municipais, sobre as idas e vindas nas várias instâncias de representantes das famílias e de seus mediadores no intuito de acelerar e garantir a realização do sonho de um chão e de um projeto urbanístico aptos a acolher as famílias de Piquiá de Baixo, e com garantias de uma qualidade de vida/ar de nível razoável. Caberia, nesse momento, contudo, uma avaliação ampla e desarmada que venha a oferecer mais elementos de suporte para compreender o papel e a intervenção/participação de cada ator nessa épica luta social, histórica, que ficou conhecida internacionalmente. Concretamente, analisar o papel primordial dos próprios ‘sujeitos e vítimas históricas’ de Piquiá de Baixo, das famílias, em geral, seus representantes/líderes, dos mediadores, da justiça, e das demais instâncias que se articularam e intervieram ao longo dessa caminhada e identificar aqueles elementos estruturantes que ajudaram a consolidar metodologias e produziram ‘frutos sociais’ concretos. E, não último, uma profunda reflexão interna, específica, dentro do próprio grupo Comboniano (incluo aqui os leigos também), inclusive para ponderar o seu atual papel histórico-missionário, e a própria ‘conveniência’ de permanecer na região, ou pensar na hipótese de ‘emancipar’ essa região, e, talvez, buscar responder a desafios ainda não suficientemente identificados e enfrentados em outros espaços.
Entendo que, nesse momento, embora pouquíssimas pessoas dentro do grupo comboniano tenham condições para proceder a uma reflexão dessa envergadura, - inclusive, algumas delas já não atuam mais na região ou estão próximas de sair da Província, - torna-se sempre mais urgente e necessária uma análise em profundidade, em virtude do momento crucial que está a se vivenciar em Piquiá e na nossa Província. Cabe se perguntar com muita franqueza: será que diante da progressiva ausência de envio de missionários que se dediquem quase que exclusivamente a mergulhar nos desafios dessa realidade socioambiental, a inegável constatação de que não existe, no momento, a perspectiva de ‘revitalizar/relançar’ a nossa presença em Piquiá, associada às emergências e às exigências da administração paroquial/pastoral, não tornam essa conjuntura comboniana regional bastante problemática e desafiadora a ponto de exigir uma resposta coletiva minimamente consensual? Será que permanecer em Piquiá para administrar a paróquia, inclusive considerado o atual contexto pastoral diocesano, não seria uma forma de nos iludir de que estaríamos na vanguarda missionária e em plena sintonia com os grandes princípios e metodologias da ‘ecologia integral’? Ou, não seria, por acaso, uma espécie de autoenganação e uma certa falta de respeito com quantos ainda esperam de nós aquele compromisso socioambiental competente e integral que não temos e nem podemos oferecer? A todos nós cabe a árdua sentença!
Nenhum comentário:
Postar um comentário