Muitas vezes ficamos como que paralisados diante das narrações evangélicas sobre a Ressurreição de Jesus, após a sua morte biológica. Não é pra’ menos. Os autores usam, sabidamente, uma linguagem um tanto obscura para nós do século XXI e, ao mesmo tempo, procedem de forma metafórica, e não historiográfica. Fazem teologia, catequese, espiritualidade...mas não só. Os nossos teólogos são, também, profundos conhecedores da alma humana, de suas reações e ecos diante de experiências humanas, traumáticas, de perdas, e de intensos sofrimentos causados por sentimentos de culpa. Um verdadeiro emaranhado de conflitos interiores, perturbações, síndromes do pânico, bipolaridade, inquietudes, vazios espirituais, e confusão de sentimentos de vário tipo são relatados nas narrações da Ressurreição, embora com outra terminologia.
Tudo isso emerge naquele período de transição em que os seguidores de Jesus sentem de um lado o peso da ausência do Mestre, a inegável omissão do grupo, a sua consequente fuga e dispersão e, do outro lado, o aparecimento tênue, indefinido, mas crescente e consistente, de que o Jesus historicamente conhecido e, agora, fisicamente ausente, poderia ser sentido ainda presente de uma forma inédita. Inicialmente, mediante o resgate mnemônico, plural, e interno, de palavras e gestos e, posteriormente, através de uma crescente convicção psicoespiritual de que o ‘morto’ estava vivo, e que continuava a convocar e a inspirar o grupo histórico dos seguidores de Jesus.
Concretamente, quais são os elementos comuns que perpassam praticamente todas as narrações evangélicas e que manifestam a grande sensibilidade dos autores em descrever e explicitar o conjunto de sentimentos contraditórios de culpa, de autocobrança, de traição e omissão? E, simultaneamente, o aparecimento de percepções novas de uma presença renovada do Mestre que intervém para orientar o inédito momento presente do grupo e, principalmente, o seu futuro próximo? Ao responder a essas questões estaremos tentando responder, indiretamente, a nós mesmos quando fazemos a mesma experiência humana, existencial, de perder alguém muito querido e amado, e nos sentimos culpados por acharmos que não fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para livrá-lo da morte. Ou, pior, o sentimento de nos sentir cúmplices da sua morte. E por causa disso vivemos o drama interior de não conseguir ‘nos dar paz!’ Como superar isso? Mais que isso: se o Jesus histórico pudesse voltar e estar presente no meio do seu grupo que vivencia hoje aqueles mesmos sentimentos tão contraditórios, o que Ele lhe diria? Esses textos evangélicos mostram a extrema liberdade e o radical pluralismo dos evangelistas em interpretar e colocar como ‘palavra revelada’ o que o Jesus histórico nunca disse, mas que ‘teria dito, com certeza’ se Ele mesmo pudesse aparecer e sentar no meio deles....
1. Um dos principais elementos comuns é o convite de Jesus a fazer com que os seus seguidores ‘sintam paz’. É comum achar que Jesus ressuscitado ao utilizar a expressão ‘a paz esteja convosco’, esteja saudando simplesmente os seus como se fosse uma espécie de ‘bom dia ou boa tarde’. Aparece, no entanto, com bastante intensidade que aquele modo de se apresentar é algo mais profundo. Por que o Ressuscitado utiliza essa expressão? Justamente por perceber que os seus seguidores não estão em paz! Vivem dentro de si sentimentos de culpa, de abandono, de decepção e de frustração, de dor pela perda do Mestre. Enfim, não conseguem se dar paz! Vivem de forma conturbada o seu cotidiano. Não conseguem absorver sequer as lembranças positivas da sua convivência com Jesus. Sentem-se condicionados demais por um passado recente que os julga e os condena por suas traições, medos, e fugas. Cada um dos integrantes do grupo precisava se reconciliar consigo mesmo. E virar, definitivamente, página. Sentir, existencialmente, que aquele Jesus misericordioso que era capaz de perdoar os piores pecadores da sua época, certamente, iria perdoar cada um deles também! Praticamente em todas as ‘aparições’, quando Jesus entra na casa onde o grupo está ‘trancafiado’ - muito mais por seus próprios medos do que pelas perseguições dos judeus, - os discípulos imaginam um Jesus que escancara o seu fechamento interior, e volta a oferecer, incondicionalmente, a paz e o perdão. É historicamente irrefutável que entre a morte de Jesus e as primeiras tentativas de reagrupar o núcleo histórico dos seguidores de Jesus sobre uma ‘nova consciência’, se passaram alguns anos, não dias! A memória histórica de um Jesus que reaparece, progressivamente, entre eles, criando paz interior, faz com que os seguidores do Mestre iniciem uma nova e inédita etapa em suas vidas!
2. Outro indicador que aparece com frequência é o fato de Jesus se manifestar aos seus seguidores quase sempre ‘comendo’ e nisso é reconhecido como presente. Observa-se que o Jesus experimentado como vivente não utiliza a comida como prova material para afirmar que ressuscitou, mas são os próprios seguidores que tomam consciência que era nos banquetes, junto aos pecadores, que Ele manifestava toda a sua misericórdia e compaixão. Um bom judeu nunca sentava à mesa com um seu inimigo se não existisse a intenção clara e as garantias de que ambas as partes estavam abertas para se reconciliar, enfim, fazer as pazes! Comer no mesmo prato não era para qualquer um. Os discípulos, em seu resgate mnemônico, após a morte de Jesus, percebem que se Jesus pudesse voltar a viver novamente entre eles, certamente sentaria à mesa com eles manifestando, dessa forma, que já não existia qualquer tipo de rancor ou de inimizade. Não é à toa que os dois discípulos de Emaús o reconhecem ao partir e partilhar o pão, pois não era um alimento que estava oferecendo, e sim, amizade e reconciliação. Não é mera coincidência que os seguidores de Jesus fizeram do banquete eucarístico o sinal-sacramento, por excelência, da presença de Jesus. Infelizmente, com o tempo foi transformado num rito rígido, hierarquizado, elitizado e monopolizado, mas no início não era assim. Fazer memória da presença de Jesus sentados à mesma mesa e partilhar pão e vinho (a fração do pão) era expressão de uma igreja não hierarquizada, leiga, solidária, em que os ‘pais de famílias’, em sistema de rodízio, eram os que coordenavam ‘o memorial’ da vida, morte e Ressurreição de Jesus. Em tempos de COVID19 em que medo, doença, insegurança, desemprego e morte formam uma mistura dramática, aqueles homens e mulheres que compreendem o valor do ‘banquete solidário’ - que alimenta corpos e almas, - manifestam de forma digna e autêntica a ‘presença real’ do mesmo Jesus histórico que oferecia a tantos famintos ‘pão e peixe’ com sabor de compaixão e de ternura sem limites.
3. Um último elemento comum é que o Jesus que aparece após a morte nunca é percebido como um vivente que ‘consola’ e conforma as pessoas. Um Jesus que traz a paz ao coração para que a pessoa curta, intimamente, a sua serenidade readquirida. Ao contrário, o Jesus que volta a ser sentido como o vivente é um Jesus que questiona, remotiva, reconvoca, e chama para o seguimento dele e, principalmente, manda sair, e envia. Quem faz a experiência de se sentir perdoado e reconciliado consigo mesmo, - e, portanto, em paz e livre, - não pode segurar e trancafiar dentro de si essa sua nova realidade. Essa nova consciência. Essa graça. As assim chamadas aparições são artifícios literários e teológicos para dizer que o Jesus histórico que se foi, continua, hoje, como outrora, a chamar e coordenar o grupo e, mais do que nunca, para longe de Jerusalém. Significativo é o fato comum a todos os evangelistas de que somente na ‘Galileia dos pagãos’, - longe da cidade que mata seus profetas, - é que Jesus pode ser visto/sentido. Não num templo ou numa sinagoga, nem através de práticas de piedade, rezas e meditações, mas nos gestos de cuidado, de ternura, de compaixão de tantos pobres e impuros de todas as nações que podemos sentir o Ressuscitado. Ele continua a ‘levantar/ressuscitar’ coxos, cegos e doentes, caídos à beira do caminho, através de seus discípulos que precisam ressuscitar, permanentemente, superando desânimos e desmotivações!
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