terça-feira, 28 de abril de 2020

Entrevista com Edgar Morin sobre a atual crise provocada pela pandemia


Essa crise sanitária planetária é uma crise da complexidade?
Os conhecimentos se multiplicam exponencialmente, de repente, transbordam a nossa capacidade de nos apropriarmos deles e, acima de tudo, lançam o desafio da complexidade: como confrontar, selecionar, organizar adequadamente esses conhecimentos, conectando-os e integrando a incerteza. Para mim, isso revela mais uma vez a carência do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar aquilo que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que forma um todo ao mesmo tempo uno e diverso. Com efeito, a revelação fulgurante das convulsões que sofremos é que tudo o que parecia separado está ligado, pois uma catástrofe sanitária catastrofiza em cadeia a totalidade de tudo o que é humano.

Tínhamos uma visão unitária da ciência. No entanto, multiplicam-se em seu interior os debates epidemiológicos e as controvérsias terapêuticas. A ciência biomédica se tornou um novo campo de batalha?
Cidadãos mais bem informados descobrem que certos grandes cientistas têm relações de interesse com a indústria farmacêutica, cujos lobbies são poderosos junto a ministérios e à mídia, capazes de inspirar campanhas para ridicularizar as ideias não conformes....Essa é a oportunidade para compreender que a ciência não é um repertório de verdades absolutas (ao contrário da religião), mas que as suas teorias são biodegradáveis sob o efeito de novas descobertas. As teorias aceitas tendem a se tornar dogmáticas nas cúpulas acadêmicas, e os desviantes, de Pasteur a Einstein, passando por Darwin, e Crick e Watson, os descobridores da dupla hélice do DNA, são os que fazem as ciências progredirem. É que as controvérsias, longe de serem anomalias, são necessárias para esse progresso. A ciência é devastada pela hiperespecialização, que é o fechamento e a compartimentalização dos saberes especializados, em vez da sua comunicação. E são sobretudo pesquisadores independentes que estabeleceram desde o início da epidemia uma cooperação, que agora se alarga entre infectologistas e médicos do planeta. A ciência vive de comunicações, toda censura a bloqueia.

Em que medida podemos tirar proveito da crise?
A crise em uma sociedade suscita dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de soluções novas. O segundo é a busca de um retorno a uma estabilidade passada ou a adesão a uma salvação providencial, assim como a denúncia ou a imolação de um culpado. Esse culpado pode ter cometido os erros que provocaram a crise ou pode ser um culpado imaginário, bode expiatório que deve ser eliminado. Com efeito, ideias desviantes e marginalizadas estão se espalhando confusamente: retorno à soberania, Estado de bem-estar social, defesa dos serviços públicos contra as privatizações, relocalizações, desmundialização, antineoliberalismo, necessidade de uma nova política. Personalidades e ideologias são identificadas como culpadas. E também vemos, na carência dos poderes públicos, uma profusão de imaginações solidárias: produção alternativa à falta de máscaras por empresas reconvertidas ou confecção artesanal, reagrupamento de produtores locais, entregas gratuitas em domicílio, ajuda mútua entre vizinhos, refeições gratuitas para sem-teto, creches; além disso, o confinamento estimula as capacidades auto-organizadoras para remediar através da leitura, da música, dos filmes a perda de liberdade de movimento. Assim, autonomia e inventividade são estimuladas pela crise.

Quais são os contornos dessa deflagração mundial?
Como crise planetária, ela coloca em destaque a comunidade de destino de todos os humanos, ligada inseparavelmente com o destino bioecológico do planeta Terra. Ela intensifica simultaneamente a crise de humanidade que não consegue se constituir em humanidade. Como crise econômica, ela abala todos os dogmas que governam a economia e ameaça se agravar em caos e penúrias no nosso futuro. Como crise nacional, ela revela as carências de uma política que favoreceu o capital em detrimento do trabalho, sacrificando a prevenção e a precaução para aumentar a rentabilidade e a competitividade. Como crise social, ela traz à tona cruamente as desigualdades entre aqueles que vivem em pequenas habitações povoadas de crianças e pais, e aqueles que puderam fugir para a sua segunda residência no campo.
Como crise civilizacional, ela nos leva a perceber as carências em termos de solidariedade e a intoxicação consumista que a nossa civilização desenvolveu; e nos pede que reflitamos sobre uma política de civilização (“Une politique de civilisation”, com Sami Naïr, Ed. Arléa, 1997). Como crise intelectual, ela deveria nos revelar o enorme buraco negro na nossa inteligência, que torna invisíveis para nós as evidentes complexidades do real.
Como crise existencial, ela nos leva a nos interrogar sobre o nosso modo de vida, sobre as nossas verdadeiras necessidades, sobre as nossas verdadeiras aspirações mascaradas nas alienações da vida cotidiana, a diferenciar entre a diversão pascaliana que nos desvia das nossas verdades e a felicidade que encontramos na leitura, na escuta ou na visão de obras-primas que nos fazem encarar de frente o nosso destino humano. E, acima de tudo, ela deveria abrir os nossos espíritos, há muito tempo confinados ao imediato, ao secundário e ao frívolo, para o essencial: o amor e a amizade pela nossa realização individual, a comunidade e a solidariedade dos nossos “eu” convertidos em “nós”, o destino da Humanidade da qual cada um de nós é uma partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento dos espíritos.

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