Causa choque em muitos cristãos um evento como a Marcha para Jesus, onde em nome da mensagem do Nazareno, defende-se o armamento da população, a discriminação, a violência do Estado… Mas o mesmo podemos perguntar: como a mensagem de paz e compaixão de Jesus se transformou na Inquisição, nas Cruzadas… como a sua mensagem de desapego e simplicidade se transformou no ouro do Vaticano?
Como nações que se dizem cristãs até hoje se locupletam na exploração dos povos, como praticaram e ainda praticam a escravidão? Como, particularizando mais, a Reforma protestante que se firmou com Lutero na crítica à exploração financeira da fé (na época as indulgências vendidas pela Igreja Católica) tem como descendentes Malafaia, Edir Macedo e outros tantos, que comercializam a fé do povo? Como, logo depois da morte de Francisco de Assis, um exemplo de não-violência, desprendimento e amor, muitos de seus continuadores se integraram de boa vontade ao luxo da Igreja e participaram da Inquisição que nascia naquele momento, contra o movimento dos cátaros, no sul da França? É bem verdade que parte dos primeiros seguidores de Francisco se negaram a seguir essa onda que se afastava tanto de Jesus e de seu Pobrezinho de Assis e é fato que até hoje a ordem franciscana representa dentro da Igreja Católica uma vertente progressista. Mas é verdade que o que Francisco sonhou não foi cumprido até hoje pela Igreja que ele pretendeu reconstruir, segundo a voz que ouviu.
Mais adiante, como, no espiritismo, a proposta de Kardec, que era naturalizar, democratizar e racionalizar a mediunidade, para que o contato com o mundo espiritual não fosse mais objeto de exploração, submissão e fanatismo se transformou nesse movimento espírita brasileiro em que médiuns pontificam com argumentos de autoridade e se colocam acima das críticas, na posição de lideranças narcísicas e reverenciadas? Como uma filosofia que nasceu progressista, igualitária, crítica se transformou majoritariamente num movimento conservador e apoiador de propostas reacionárias e autoritárias? Eu pensava sempre que os budistas tinham sido uma exceção nesse sentido, mas me enganei. Porque também podemos nos indagar, como a mensagem de Sidarta Gautama, de compaixão e respeito a todas as formas de vida, pode servir de justificativa para que radicais budistas ataquem cristãos e muçulmanos no Sri Lanka? O que significa esse afastamento brutal dos ensinos mais essenciais dos grandes mestres, da incompreensão e deturpação das mais diversas formas de espiritualidade?
Levanto aqui uma análise de que tomo emprestado alguns conceitos psicanalíticos. Nosso instinto primitivista, nossas pulsões básicas, em que a agressividade e a morte têm grande força em nosso inconsciente, são zonas muito profundas da nossa natureza. As religiões nos acenam com modelos de paz, santidade, virtude moral… mas geralmente essa moralidade, traduzida por instituições hierarquizadas, por dogmas irracionais – e não mais pelo exemplo livre, contagiante e verdadeiro dos grandes mestres – acaba por reprimir e não transformar de fato as pessoas. Temos, portanto, muito mais hipócritas religiosos do que pessoas de fato elevadas moralmente, capazes de sentir compaixão, empatia e amor universal. Por isso mesmo, Jesus atacou os fariseus e foi duro com eles e acolhedor com todos os supostos pecadores e com todos marginalizados pela sociedade de sua época.
A boa notícia, entretanto, é que se todos almejam essa altura moral, mas se deixam ainda invadir pelas paixões, pelo instinto de destrutividade, pelo desejo de poder, então é porque no fundo, sabem o que é moral, o que é justo, o que é bom. Aliás, apenas uma pequena parcela da população é psicopata a ponto de não ter nenhuma noção do bem e do mal e nenhuma capacidade de empatia. Isso significa que a maioria dos que que não se indignam com a atitude de um Moro, que apoiam a tortura e a pena de morte, que parecem não ter nenhuma noção de justiça, mas se dizem cristãos e são capazes de amar os próximos mais próximos, estão na zona fronteiriça dos que querem o bem, mas fazem o mal – como o próprio Paulo dizia fazer. Tiro uma frase muito pertinente do filme Lutero, em que o confessor dele lhe diz: o problema é mais odiar o mal do que amar o bem.
Às vezes, o suposto ódio ao mal se transforma num afastamento completo do bem.
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