quinta-feira, 20 de maio de 2021

CARTA ABERTA DO ENCONTRO DOS BISPOS DA AMAZÔNIA LEGAL

 

AO POVO BRASILEIRO

“Vi, então, um novo céu e uma nova terra, morada de Deus com sua gente (…).

Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor.

Sim! As coisas antigas passaram! Eis que faço novas todas as coisas” (cf Ap 21, 1- 5).

Nós, bispos da Amazônia, presbíteros e diáconos, religiosos e religiosas, cristãos leigos e leigas em profunda sintonia com o Sínodo Pan-Amazônico, reunidos nos dias 18 e 19 de maio de 2021, no exercício de nossa missão evangelizadora dirigimos esta mensagem a toda sociedade, aos povos da Amazônia, aos homens e mulheres comprometidos com a defesa da vida. E o fazemos profundamente sensibilizados pela situação de vulnerabilidade e ameaças que sofre toda casa comum, agravada pela pandemia da Covid-19, e pelo acirramento das disputas territoriais com expansão das atividades minerais e do agronegócio em terras de populações tradicionais. 

Nosso olhar vigilante

Acompanhamos estarrecidos, mas não inertes, o desenrolar de um arquitetado projeto genocida que, por sua vez, revela o devastador agravamento de uma crise que escancara a pobreza diante da escandalosa concentração de riquezas. Este é o sinal evidente da perversidade de uma economia de mercado, embasada no capital especulativo, que se alimenta das necessidades dos estados nacionais, fazendo destes seus novos consumidores. Assim, o capital sequestra a autonomia dos Estados, exige e dita os novos rumos da política, rompe com as históricas conquistas sociais, desmonta as instituições e políticas de seguridade, alimenta-se das posturas extremistas, que por sua vez buscam na religião sua legitimidade de expressão. As lutas das populações da Amazônia têm diante de si o escandaloso desafio da pretensiosa legalidade do ilícito. Ou apelamos para a garantia legal da vida e dos territórios, ou nos defendemos quando o extermínio se torna lei! Este dinamismo é escancaradamente presente diante da questão das lutas dos povos indígenas. O cenário político indigenista vivido no Brasil é de retrocesso, com o agravamento das violações dos direitos destes povos, principalmente no que se refere à regularização dos seus territórios. Eles enfrentam invasões de suas terras, incentivadas por estratégias políticas que favorecem a exploração, por garimpeiros, mineradoras, madeireiros, desmatadores, agentes do agronegócio, entre tantos outros, gerando toda espécie de violências e violações de direitos humanos e da natureza. Somam-se os incêndios, poluição das águas dos rios, contaminação de peixes, contaminação das pessoas e dos animais; assassinatos, violência sexual, pandemia, desassistência.

Preocupa-nos a cadeia de iniciativas em vista do desmonte e fragilização da legislação socioambiental e fundiária: O PL 3729/2004 que desmonta o sistema de licenciamento ambiental; o PL 2633/2020 e PL 510/2021 que abrem as “porteiras” para a grilagem de terras; o PL 191/2020 permitindo a mineração e atividades econômicas em terras indígenas; o PL 6299/2002 que flexibiliza fabricação e uso de agrotóxicos. Enquanto escrevemos estas linhas, populações que há mais de 30 anos estavam presentes em seu chão, são despejadas no Assentamento Jacutinga em Porto Nacional – Tocantins, contrariando a recomendação do Conselho Nacional de Justiça de não executar decisões desse tipo em tempo de pandemia.

Outra série de agressões vão se acumulando neste cenário que não escapa aos nossos olhos: as ameaças às unidades de conservação, o acirramento da violência no campo e na cidade, a crise migratória, o feminicídio, a exploração sexual, o trabalho escravo, o tráfico de pessoas, entre tantos. Como se não bastassem essas crises provocadas pela intervenção humana, o fenômeno das enchentes, que pode ser agravado pelas mudanças climáticas, castiga nossas populações ribeirinhas. De olho nas águas, percebemos uma iminente crise hídrica como pauta de um próximo embate. 

Somos sabedores que os governantes têm o dever constitucional de agir para evitar a destruição das riquezas naturais e implementar políticas públicas que amenizem a situação de desigualdade e pobreza, porém, na Amazônia isso não vem acontecendo. Assistimos um governo que vira as costas a esses clamores, opta pela militarização em seus quadros, semeia estratégias de criminalização de lideranças e provoca conflito entre os pequenos. Dói em nossos corações de pastores as imagens de escárnio e zombaria das dores de nossa gente: “Nossa alma está farta, em extremo, da zombaria dos satisfeitos e do desprezo dos soberbos” (Sl 123,4).

Nossa escuta contemplativa e esperançosa e nosso comprometimento inequívoco

Os caminhos traçados pelo Sínodo da Amazônia, catalogados em forma de compromisso no novo Pacto das Catacumbas pela Casa Comum, deixaram evidente a necessidade de superar uma lógica colonizadora, de escolher a periferia como centro da Igreja, de assumir o caminho da inculturação e interculturalidade, seja no campo dos ministérios como das estruturas: uma Igreja com o rosto Amazônico. Constatamos com alegria a atuação de uma infinidade de comunidades constituídas e milhares de lideranças de cristãos leigos, na sua maioria mulheres, que atuam no campo da evangelização e educação socioambiental. Não somos ingênuos de pautar nosso agir em polarizações agressivas, como insistem até mesmo alguns que dizem professar a fé em Jesus Cristo, mas não haja dúvidas de que lado nós estamos: por causa do Evangelho e do Reino reafirmamos nossa incondicional escolha por estas populações, por estes territórios, por estas vidas ameaçadas. Em nada nos fascina qualquer aproximação com esses sistemas perversos. Sentimo-nos impulsionados e animados a reafirmar alguns compromissos:

Prosseguir e avançar em nossa pauta pastoral as reflexões e indicações ousadas do Sínodo em torno dos ministérios, como apresenta o Documento Final do Sínodo nos números 103 e 111, e da formação inculturada dos nossos agentes;

Elaborar um plano estratégico com diretrizes pastorais, que encarne o sonho social, ecológico, cultural e eclesial para a Pan Amazônia;

Incentivar a questão da segurança alimentar como estratégia de cuidado pela vida;

Reafirmar nosso envolvimento efetivo com o Pacto pela Vida e pelo Brasil, unindo-nos ao “coro dos lúcidos” fazendo nossas as suas pautas: a vacina para todos, a defesa do SUS, o auxílio emergencial digno, pelo tempo que se fizer necessário e a investigação da responsabilidade pela má gestão do sistema de saúde em meio à pandemia do coronavírus. Da mesma forma tornar vivo o Pacto Educativo Global, proposto Papa Francisco, em todas as regiões da Amazônia. Conclamamos todas as instâncias eclesiais e a sociedade como um todo a unir-se neste engajamento;

Exortamos, às mais variadas lideranças de cristãos leigos e leigas, que não desanimem da luta, que renovem continuamente o senso de comunhão eclesial, que a paixão pelo Reino de Deus seja sempre alimentada, e que a sensibilidade para com os mais pobres seja permanente.

Não nos faltem a intercessão de nossos mártires, companheiros de caminhada, e o olhar benevolente da Senhora de Nazaré, Mãe da Amazônia: “esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”! A Mãe de Deus está conosco. Sigamos em frente!



Amazônia, 19 de maio de 2021.



Participantes do Encontro Bispos da Amazônia Legal

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