Nascemos impuros. Fomos gerados e nascemos no pecado. Assim sempre nos disseram. Já ao emitirmos os primeiros gemidos somos herdeiros de uma mancha original. O pecado cometido, supostamente, na origem dos tempos por ‘Adão e Eva’. Mesmo sabendo que, afinal, isto significa carregar dentro de si a tendência quase inata de nos substituir e dispensar a Origem de toda consciência ética pautada por valores profundamente ‘divino-humanos’. E a perene tentação de criarmos a nossa própria consciência, pautada por interesses, ambições e projetos mesquinhos pessoais. A história já se encarregou para provar que quando aceitamos isso já destruímos o paraíso que idealmente sonhamos. O fato é que nos educamos com fortes sentimentos de culpa. Impuros, imundos, indignos. Assim nos apresentamos diante de um deus cuja misericórdia nos foi por muito tempo ocultada. Fomos catequizados a nos relacionar com um deus que vigia e monitora os ‘filhos e filhas rebeldes’. Sempre atento a puni-los e a castigá-los por causa dos seus pecados. Movidos pelo medo do castigo e da punição eterna encaramos as poucas coisas boas que fazíamos não como expressão da ‘Bondade Absoluta’ que está em nós, mas como uma forma de expiação. De purificação. E a permanente sensação de que eram ações insuficientes para aplacar a ira de um deus sedento de castigo. E inadequadas para merecer a salvação plena. Todas essas distorções e manipulações intencionais geraram não poucos traumas e distúrbios em muitos corações e mentes. Era uma necessidade da religião oficial de cultivar e impor tudo isso para poder obter submissão e controle. Mediante o medo a Deus e através da ameaça da punição divina controlavam-se consciências e vontades. Dominava-se de forma absoluta.
O evangelho de hoje nos oferece mais uma página maravilhosa do que realmente reside no coração de Deus. Não do deus dos sacerdotes. Dos funcionários da religião oficial. Mas no coração do Deus de Jesus de Nazaré. No coração de Deus que nos foi manifestado mediante Jesus de Nazaré só cabe amor, compaixão, liberdade, pureza, vontade de viver. Marcos nos apresenta o encontro de um ‘leproso-impuro’ – vítima consciente do seu estado, – com Jesus. É o ‘impuro’ que toma a iniciativa e que suplica o mestre de libertá-lo definitivamente do seu estado de impureza. Não quer ser mais um excluído por Deus e nem pelas pessoas. Quer se libertar de tudo o que o mantém preso: o medo, a culpa, a exclusão social e religiosa. O evangelista nos relata com todo realismo que Jesus diante das súplicas do leproso ‘ficou cheio de ira’ (v.41). É a revolta natural de quantos conseguiram desmascarar o poder da manipulação e percebem com seus próprios olhos o poder destrutivo e dilacerante da ideologia religiosa dominante no corpo de um filho de Deus. Deus o havia criado puro, sem mancha e sem pecado original. Os homens o haviam reduzido a um opróbrio humano e social, negando-lhe a sua filiação divina e mantendo-o sistematicamente num estado de exclusão. Jesus emerge como aquele que reproduz o ‘gesto criador original’ de Deus. Devolve-lhe vida, dignidade, liberdade, e lhe pede um último gesto. De se apresentar justamente àqueles que tinham o poder de reconhecer oficialmente se ele estava definitivamente curado. E oferecer pela sua purificação um sacrifício ‘como testemunho para eles’(v.44) Uma tentativa de Jesus de provocar os sacerdotes do templo no sentido de eles começarem a perceber que a sua missão é a de ajudar a ‘purificar’ pessoas, a curá-las e libertá-las, e não a de mantê-las dependentes deles! Marcos termina nos informando que a pessoa curada, purificada, livre de todo complexo de culpa e de dependência se afasta definitivamente do lugar da dominação e da exclusão (templo e sacerdotes) e anuncia, prega, espalha ‘a notícia’ do gesto que o beneficiou. Um tabu religioso havia sido quebrado: a boa nova é que agora, em Jesus de Nazaré, Deus não castiga, não pune, não submete, mas acolhe, purifica e envia. Só quando tomamos consciência disso nos abriremos para valorizar e realizar o bom e bonito que temos dentro de nós e o testemunharemos a quantos ainda não o descobriram.
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