Aparentemente vivemos em uma cultura onde o que vale e o que influencia o ser humano em seus comportamentos parecem ser os gestos concretos e coerentes, e os atos formais e legalmente registrados. Muitas vezes afirmamos com solenidade que o que vale é o nosso fazer, e não o nosso falar. Ninguém, por exemplo, fecha um negócio ou faz um acordo tendo como base somente a palavra reciprocamente dada. Onde a confiança é determinante, e é a única garantia oferecida para o cumprimento do que foi combinado. Entretanto, queiramos ou não, vivemos ainda sob o domínio e o fascínio da palavra. A palavra não é somente um canal de comunicação. Ela exerce uma sedução única, encantadora, mágica. Mediante a palavra o seu veiculador, o ser humano, manifesta habilidades para anestesiar ou mobilizar massas. Conduzi-las para o paraíso da beleza da vida, ou relegá-las ao medo e aos mais angustiantes sentimentos de culpa. Ao não sentido da vida.
O evangelho de hoje relata a experiência exaltante de alguns poucos pescadores de Cafarnaum ao contato com a palavra do mestre de Nazaré. O encantamento com ‘a palavra’ daquele mestre deu origem a algo impensável que revolucionou irremediavelmente a sua existência. A narração parece ter no fascínio da ‘palavra’ o seu eixo. De fato, Jesus prega a ‘palavra’, a multidão escuta a ‘palavra de Deus’ (v.1), Pedro lança as redes ‘sobre a palavra’ de Jesus. É graças à obediência á ‘palavra’ e à relação de confiança no mestre que os pescadores enfrentam o ‘alto mar’ (literalmente, v.4). É no ‘alto mar’ que eles apanham ‘uma grande quantidade de peixe’ (v.6) deixando-os atordoados, mas integralmente recriados em relação à vida e à sua própria identidade. Eles se tornam ‘pescadores de homens’(v.10) após o encontro com a ‘palavra produtiva e multiplicadora’ do Mestre. Acredito que aqui surgem alguns elementos profundamente reveladores para a nossa vida, hoje.
O primeiro. A palavra por si só não cria e não destrói. Ela tem que encontrar não somente alguém que a saiba veicular com encantamento e habilidade, mas ela tem que apostar e achar no ouvinte (que nunca é só ouvinte passivo!) uma predisposição própria, uma identificação com a palavra proclamada e, principalmente, com o seu veiculador. A palavra deve mexer com os sentimentos, os sonhos, as expectativas, os projetos de vida das pessoas, mas caberá a elas dar-lhe seqüência. Aqueles pregadores de sucesso definidos por nós como ‘charlatões’ o são de verdade, ou eles possuem um atrativo fatal que vai além da habilidade exterior?
O segundo. A palavra por si só não transforma e não preserva. Não mobiliza e não paralisa. Ela motiva. Ela desencadeia no ouvinte atento e aberto um movimento novo para si e para os outros. A relação de confiança recíproca entre o proclamador e o interlocutor faz com que os dois mudem. Se Pedro e seus companheiros de um lado enfrentaram os perigos e os conflitos da vida (o alto mar) graças à sua confiança na palavra proclamada pelo Mestre, é também verdade, do outro lado, que Jesus não pediu isso a alguém de forma aleatória, mas a alguém que ele percebeu que poderia acatar o seu convite. Pedro foi certamente ‘seduzido’ por Jesus, mas também o Mestre ‘se sentiu seduzido’ por aqueles pescadores. Intuiu a sua abertura e predisposição. Só assim que podemos afirmar, indiretamente, que a ‘palavra’ cria, muda, transforma ou, paradoxalmente, ‘cria’ conformação, escravidão, medo, alienação.
O terceiro. A palavra se torna inquietante e assustadora quando ela nos direciona para rumos desconhecidos, imprevisíveis e ignorados. Quando nos joga nas profundezas do mar da vida. Quando ela é ‘mera palavra’, e não é ladeada nem por gestos concretos e nem por garantias de qualquer tipo. Quando ela exige somente ‘fé pura’ nela, e nada mais! Podemos ter a sensação de nos perder, de deixar de existir. Sentimo-nos impotentes e inseguros. Jesus, no evangelho de hoje, nos diz que é esta palavra que, paradoxalmente, tornar-se-á ‘produtiva, abundante, multiplicadora, frutífera’. Será esta a nos fazer perceber que podemos ser ‘outras pessoas’. Pescadores capazes de enfrentar ‘outros mares’ e outros desafios. Pescadores capazes de ‘seduzir’ mais ‘pregadores’ para multiplicar vidas e esperanças.
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