Imaginemos por um instante o que deve ter passado pela cabeça de Jesus ao pressentir que em Jerusalém onde havia chegado poucos dias antes os grupos dos saduceus, herodianos e funcionários do templo já estavam armando uma cilada para prendê-lo! E para pôr fim às suas ‘piedosas ilusões’ de acreditar que estava próxima a ‘instauração’ do novo jeito de governar de Deus (realeza de Deus). Em outras ocasiões a nata religiosa e política de Israel havia tentado fazer o mesmo com ele. Embora consciente dos perigos que corria aqueles dias, o ‘mestre da Galiléia’ volta a Jerusalém e o faz escolhendo justamente o período da celebração pascal. Celebração que se dá nas casas e não nos templos e sinagogas, reunindo a família extensa, e onde todos os seus membros participam ativamente. Uma páscoa que não podia ser só comunhão e fraternidade, e sim, primordialmente, ‘memória subversiva’ de um passado carregado de sofrimento. Um passado que fazia lembrar escravidão e humilhação, tortura psicológica e submissão desumana. Na mente atormentada, mas lúcida de Jesus, afloram lembranças, gestos, memórias e narrações de um passado que parece se confundir com um presente igualmente intrigante e conflituoso. Os ‘faraós’ de então pareciam ter voltado para se reencarnar nos ‘césares’ de hoje. A escravidão de outrora parecia continuar a se perpetuar na dominação ‘de corpos e mentes’ dos romanos e de seus co-nacionais aliados.
Como, então, celebrar de forma serena e harmoniosa, uma ‘páscoa-passagem-libertação’ nesse clima de renovada dominação e escravidão? Como ignorar que hoje como outrora os ‘faraós de Roma e do templo’ continuavam a matar ‘os primogênitos’ e a sugar o sangue e esperança de tantos filhos e filhas do mesmo Deus? Jesus percebe que aquela páscoa devia ter um sabor especial. Que não podia ser uma mera repetição de uma tradição religiosa desvinculada daquela realidade conflituosa. Precisava embutir um sentido que, embora não totalmente novo, fosse, pelo menos, bem atualizado, e em sintonia com a realidade em que a população de Israel vivia. Jesus toma uma decisão que ainda hoje nos deixa boquiabertos: convoca e promove a memória ‘atualizada’ da páscoa não com a sua ‘família extensa de sangue’, e sim com os seus discípulos e discípulas. A sua nova família. Mantém os mesmos ‘significantes’ (pão sem fermento, ervas amargas, cordeiro, vinho, etc.) mas lhes atribui um ‘significado’ muito diferente, surpreendente. Ele, Jesus, mas também os próprios discípulos e discípulas presentes na ceia são, hoje, o cordeiro, o pão e o sangue desde que saibam se tornarem servidores/escravos-as uns dos outros como ele o foi. Desde que saibam servir para libertar de toda escravidão e de todo escravizador. Jesus e os seus discípulos-as se entenderam como ‘novos-as Moisés’ que tinham a missão de se colocar a serviço de seus contemporâneos para libertá-los dos ‘faraós romanos e nacionais’. Hoje nós somos convocados a reproduzir não belas e empolgantes liturgias da ‘ceia do Senhor’, e sim ‘servir’ para que não haja mais escravos e escravizadores nas nossas casas, nas nossas igrejas, nos nossos congressos, nos nossos lugares de trabalho!
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