No livro do Gênesis se narra que Caim após ter matado o seu irmão Abel fugiu e se escondeu. Deus, contudo, corre atrás dele e lhe pergunta: ‘Onde está o seu irmão Abel’? Caim retruca: ‘ Não sei; sou, por acaso, guardião de meu irmão’? (Gn.4,9) Aqui parecem residir as raízes ‘antropológicas’, ou melhor dito, ‘ideológicas, da ‘falta de cuidado’ de um irmão para com outro. A resposta de Caim assume características de trágico e injustificável cinismo principalmente se se considera que ele acabava de cometer o insano e horrível gesto de eliminar fisicamente o seu próprio irmão.
Não há como negar que existe, hoje, uma difusa tendência nas relações interpessoais de cultivar sua própria autossuficiência com características de exacerbado individualismo que impede uma razoável abertura e sintonia para com os outros ‘semelhantes’. Expressões populares já consolidadas como ‘e eu com isso’? Ou, ‘fica na tua, não te mete’ ou, ‘fica quieto no teu canto, ninguém te chamou’ parecem revelar que o ‘ideal’ a ser praticado, segundo uma determinada cultura relacional contemporânea, é a assunção da 'falta de cuidado' com o outro. Diga-se, de passagem, que isto nada tem a ver com a atitude respeitosa e louvável de não interferência no universo do ‘outro’ sem ser chamado em causa por ele. É, afinal, a recusa a se deixar envolver e afetar pelos problemas dos outros, suas dores e angústias, suas alegrias e esperanças. Com efeito, quando a nossa sensibilidade e consciência são arranhadas pelos dramas alheios sentimo-nos, em geral, incomodados e, geralmente, instigados em ‘fazer algo’ pelo outro. É, sem dúvida, um embate interior entre o desejo de ignorar o sofrimento do outro para evitar sermos incomodados e envolvidos por ele, e os recônditos apelos de uma consciência ética bastante anestesiada que, bem ou mal, não deixa de interpelar. Acreditamos que, hoje, dia de 'todos os santos', o apelo urgente a ser lançado e promovido nas igrejas e na humanidade é ‘Eu me importo com você!
A liturgia católica, de forma sábia, escolheu como trecho evangélico na solenidade de todos os santos as ‘bem-aventuranças’. Não é para menos! Santo-bem-aventurado para Jesus é aquela pessoa que se educa e se torna visceralmente solidária com aqueles que choram, com os construtores e artífices de paz, com os ‘desterrados e expropriados’ de terra e de esperança, com todos os famintos de pão e de justiça, com todos aqueles que detestam e não cultivam duplicidade e hipocrisia. Esse itinerário de aproximação e de fusão com o universo do outro que sofre, mas que constrói soluções para pôr fim à dor e às angústias próprias e alheias requer conversão radical, superação definitiva do ‘senso comum’, ou seja, de não se importar com os outros. Poderíamos dizer que é um processo educativo sistemático a se importar pelo outro que vive ao nosso lado ou que entra a fazer parte, progressivamente, das nossas atenções e cuidados. Jesus não pede para os seus discípulos, - pois é a eles que se dirige, prioritariamente, - de, simplesmente, se ‘interessar’ pelos outros, mas de se ‘importar’ com as diferentes categorias de sofredores. O interesse, a princípio, manifesta uma genérica curiosidade pessoal com relação a algo ou alguém, eticamente inócuo e que não exige comprometimento; já ‘importar-se’ com alguém reflete a existência de prioridades, de hierarquia de valores e revela desejo de simbiose com alguém.
Santos, hoje, não são os canonizados milagreiros vivos ou mortos, nem tampouco os que são contemplados nos calendários católicos ou venerados em santuários em redomas douradas cercadas por velas e ofertas votivas, mas são todos aqueles humanos, batizados ou não, que se importam com seus semelhantes, com suas condições de vida, suas dores e alegrias, seus sonhos e esperanças, e com eles fazem comunhão. Que não fogem e nem se escondem e, ao ser interpelados por Deus não temem em responder que' 'Abel está aqui, comigo, sob os meus cuidados e eu....sob os dele'!
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