De 27 de outubro até 10 de novembro, houve um aumento estatisticamente significativo da violência no campo, com vários assassinatos ocorridos em áreas de conflitos fundiários nos estados do Maranhão, Pará, Pernambuco e Paraíba. Escandalosamente significativo o que aconteceu, no dia 10 de novembro, no Maranhão, quando um grupo de dez pistoleiros a mando de um fazendeiro invadiu o povoado São Francisco, localizado em Barra do Corda, resultando na morte de um deles. Outros dois integrantes da quadrilha foram baleados e socorridos, enquanto outros sete foram resgatados por policiais e presos em flagrante.Noticia-se imediatamente que dos dez bandidos nove são policiais militares e um penal. A dimensão, a simultaneidade e a configuração destes fatos provocam reações e debates, que vão além da pontual e preciosa nota da CPT do dia 12.
Eis algumas perguntas e reflexões que circulam nestes dias.
Seria uma mera trágica coincidência a confluência desses atos violentos no arco de cerca quinze dias em diferentes regiões do Brasil? Ou são violências programadas e coordenadas?Esta última não é uma hipótese aceitável, mas é bom sublinhar que existem articulações parlamentares e políticas, que poderiam repetir as estratégias da antiga UDR: a Frente parlamentar "Invasão zero" (200 parlamentares), criada logo após CPI do MST e, na Bahia, em paralelo, o Movimento "Invasão zero" (10mil proprietários em 200 municípios). Descartada, evidentemente, a hipótese de uma coordenação destas violências, poderíamos pô-las no âmbito da polarização entre bolsonarismo e lulismo?
Chama a nossa atenção o fato de que ao longo dos quatro anos do governo fascista de Bolsonaro não haja havido, pelo que se sabe, uma concentração de assassinatos e atentados contra quilombola, camponeses e indígena tal como a que se deu nesses dias. Teria sido mais lógico que atos violentos dessa magnitude tivessem ocorrido ao longo daquele mandato, e não agora, num governo que, formalmente, estaria a defender e a favorecer as categorias mais fragilizadas do campo. Ou, seria, por acaso, a reação de retaliação do latifúndio justamente diante de uma nova e aguerrida postura do atual governo em favor das populações do campo? Contudo, numa rápida e superficial leitura da política fundiária levada adiante pelo MDA e o INCRA do atual governo não nos parece entrever ações políticas que tenham criado algum tipo de impacto significativo tal a ponto de provocar possíveis retaliações do latifúndio. Muito pelo contrário...
Haveria uma outra hipótese a ser considerada: estariam as populações do campo se sentindo fortalecidas e/ou, supostamente, protegidas pelo atual governo de forma a torná-las mais aguerridas e ousadas em suas lutas e reivindicações, e as novas agressões do latifúndio seriam, afinal, uma mera resposta defensiva a essas novas empreitadas sociais desses movimentos? Não nos parece, também nesse caso, vislumbrar ações de mobilização, de ocupação fundiária e de retomada de territórios originários e tradicionais de tal envergadura que venham a justificar uma renovada metodologia das populações do campo, num novo e suposto favorável contexto político.
Ao descartar a ‘mera coincidência’ desses acontecimentos cabe tentar compreender quais outras razões pressionam, por exemplo, um grupo de policiais para se colocarem a serviço de um ‘fazendeiro’ com a finalidade de limpar de forma clandestina uma determinada área. Seria o movente pecuniário a única razão? O que move um grupo consistente de PMs da mesma cidade a colocar em risco a sua profissão para fazer um ‘trabalho sujo’?
Insiste-se por parte de muitos sobre o papel do Estado nestes conflitos territoriais e repetimos as figuras da ‘omissão’, com anexa impunidade, e da ‘cumplicidade’. Essas leituras são suficientes para entender a responsabilidade do estado nestas agressões? Achamos que estas perguntas e reflexões, aparentemente oportunas e necessárias, nos deixam, porém, na escuridão e, sobretudo, não abrem portas e caminhos para uma praxe política coerente de enfrentamento da violência.
Talvez, possamos encontrar alguma luz retomando a análise do protagonismo político das elites rentistas e empresariais do Brasil. Somos assim obrigados a repetir a única descrição ao nosso ver incontestável do Estado brasileiro: desde a sua origem, se caracteriza como estamento oligárquico-patrimonialista; desde sempre o Estado é o próprio ‘Crime Organizado’.
Podem aparecer ao longo da nossa história, além das ditaduras e dos golpismos, sempre por interferência militar, maquiagens republicanas, democráticas e hipócritas afirmações sobre a vigência do ‘Estado de Direito”, mas também em Estados, como o Rio Grande do Sul, em que parecia vingar uma tradição liberal autêntica, nas últimas décadas vingou a versão do Estado oligárquico-patrimonialista, o Estado como ‘Crime Organizado’. E seria míope continuar pensando que essas características do Estado brasileiro estariam presentes somente no Rio de Janeiro. Resumindo: o Estado não é cumplice da violência nem é meramente omisso diante dela, porque ele é incontestavelmente o quartel-general desta guerra contra os pobres e os pequenos.
O Brasil nos proporciona uma versão tropical do Estado de Exceção: a originalidade da Exceção brasileira está no fato que ela se alimenta de forma absolutamente independente da legalidade constituída. As nossas elites sempre conviveram, sem problema éticos e políticos, com a convicção profunda, atávica e fortemente enraizada da primazia da autolegitimação sobre a legalidade. Todo o aparato jurídico – código civil e código penal – está submetido ao privilégio incontestável das elites, que decidem, independendo das leis, o que é legítimo, necessário e conveniente para a manutenção do poder. E as leis são normalmente usadas como arma política contra os inimigos e adversários, enquanto familiares, amigos e aliados são dispensados de obedece-las e absolvidos de antemão, também em casos de crimes hediondos.
Evidentemente, as leis cumprem também a função de disfarce da primazia da autolegitimação, encenando a ficção do ‘Estado de direito’. Ficção que consegue ocultar o papel indispensável que o Poder Judiciário ocupa no pacto oligárquico: respeitar caninamente, com rara exceções, a solidariedade de classe, a cumplicidade entre brancos ricos, cultos, proprietários e profissionais liberais. Saber disto deveria minar o eventual entusiasmo dos defensores dos direitos humanos, porque no confronto jurídico com o Poder Judiciário saem quase sempre derrotados o com vitórias mutiladas por negociações injustas e parciais.
No embate processual com o Estado, as comunidades camponesas saem sempre derrotadas. A impunidade, totalmente garantida aos assassinos, mandantes e executores materiais, de indígenas e camponeses, nestes últimos quarenta anos, é mais uma prova incontestável desta análise. A impunidade não é consequência do descaso dos inquéritos policiais e da morosidade do Judiciário, mas o resultado, deliberadamente construído, de um Estado, que é o próprio Crime Organizado. E, então, no âmbito da autolegitimação oligárquica, não há como estabelecer uma diferença entre Polícia e Milícia, come se somente ocasionalmente a elite precisasse dos serviços da jagunçada e pistolagem.
Milícia e pistoleiros são elementos constitutivos, orgânicos, do Estado brasileiro. E esta configuração não é característica das oligarquia do passado: no Maranhão funcionava com Vitorino Freire e José Sarney e na Bahia com Antônio Carlos Magalhães, mas continua funcionando com os governos sucessivos, com a única variável do acompanhamento de uma narrativa progressista. Assim a violência no campo permanece com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Dilma Roussef, Lula e, obviamente, continuou com Bolsonaro.
Os populistas de extrema direita aceitam e incentivam a violência para defender os valores tradicionais e, para eles, inegociáveis - Deus-Pátria-Família - ameaçados pelos ‘comunistas’. Repetem a encenação antissistémica nazista e fascista para, de fato, hoje como ontem, terminar radicalizando a violência do sistema capitalista. A esquerda ainda acha que ainda pode se declarar aliada dos pequeninhos, mas hoje é incapaz de reconhecer a distância que o progressismo da classe média construiu entre si e as massas famintas e desempregadas.
Uma esquerda que está equivocada quando se pensa como a herdeira do legado dos trabalhadores que, porém, há muito tempo, não se reconhecem mais como classe. Uma esquerda que, quando está no governo, não tem antídotos contra a violência do capitalismo e é obrigada a obedecer à lógica do mercado e às reivindicações das elites amplamente representadas pelo Centrão que manda na Câmara, no Senado e no País. Uma esquerda derrotada e sem futuro, acometida pelo cansaço ideológico, pela repetitividade eleitoreira, pela incapacidade de entender que a sociedade mudou, pela falta de discernimento que bloqueia qualquer projeto alternativo para o Brasil, em tempos de fome, de desemprego, de violência contra indígenas e camponeses, tempos de novas subjetividades e de dramáticas conjunturas climáticas e bélicas, que marcam tragicamente a atualidade. Uma esquerda, que, mais tarde o mais cedo, será varrida do panorama político internacional, pela onda demencial e trágica do populismo de extrema direita.
O que fazer diante de tantos escombros?
Alguns dias atrás, Marcello Tarí nos deu uma dica preciosa: uma profecia bela e intensa de Emmanuel Mounier, que pode ser um presente para aqueles que ainda queiram lutar. “O perigo, a preocupação são o nosso destino. Nada nos deixa prever que esta luta possa terminar numa fração de tempo calculável, nada nos incentiva a supor que a luta seja constitutiva da nossa condição. Com efeito a perfeição do universo pessoal encarnado não se identifica com a perfeição de uma ordem, como pretendem todos os filósofos (e todos os políticos), que pensam que um dia o ser humano possa totalizar o mundo. A nossa é uma perfeição de uma liberdade que luta e luta incansavelmente. E que continua firme até depois da derrota. Entre o otimismo intolerante da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o verdadeiro caminho do ser humano é este otimismo trágico, em que ele pode encontrar a sua justa medida num ambiente de grandeza e de luta”. (Mounier Emmanuel, Il personalismo, Ave ed. 2004, pag. 56)
A única arma com a qual é permitido marchar para a guerra é a Palavra. E é a própria Palavra que traz a guerra onde reina a paz. Palavra que decide desestabilizar o status quo: “Não penseis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa.” (Mt 10,34-36).
Não é Palavra que simplesmente aceita a inevitabilidade do conflito. É a própria Palavra que o instaura e o preserva com radicalidade.
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