segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Erexim: o desejo de comunhão para além da morte. Uma história verdadeira



Lembro-me que fiquei muito impressionado quando os índios Ka’apor me contaram, no longínquo 1986, a reação que teve Erexim, ancião Ka’apor da terra indígena Alto Turiaçu, quando da morte da sua esposa. Ao regressar da mata, na primeira parte da tarde, e encontrando já sem vida a esposa, Erexim entrou em um profundo estado de desespero e incontrolada depressão.
Os Ka’apor definem esse estado como sendo “ka’u” (estado de quase loucura). Como é de costume na tradição Ka’apor, a finada foi imediatamente envolvida na sua rede com alguns objetos pessoais e levada a um lugar bastante afastado da aldeia e enterrada numa cova não muito profunda.

Existe ainda hoje a convicção entre aquela etnia de que imediatamente após a morte de uma pessoa a sua primeira alma-espírito – aquela interior que co-existia com o seu corpo – ao se descolar e separar poderia invadir o corpo de uma outra pessoa viva próxima e produzir-lhe a morte. Isso explica a pressa dos Ka’apor em enterrar seus defuntos! Uma vez sepultada, são colocados ao longo dos caminhos da mata galhos de espinhos e outros tipos de arbustos para não permitir que a alma ainda vagante do falecido reencontre o caminho da aldeia e venha a se apoderar de alguém.
Erexim que não havia derramado uma lágrima sequer em ocasião da morte da esposa, embora visivelmente inconsolável, tomado por uma forte dor interior fez um gesto que nenhum índio Ka’apor havia feito até então. Ao entardecer, poucas horas após o sepultamento da esposa, Erexim recolheu a sua rede, algumas cordinhas de buriti, arco e flecha como se preparando para uma grande viagem. O filho Ingua’i logo compreendeu a intenção do velho pai: ele queria ir até o lugar do sepultamento da esposa e lá encontrá-la para comungar o mesmo destino. Erexim havia decidido de morrer como a esposa. Chorando, Ingua'i o suplicava para que desistisse daquele insano pensamento. Erexim, todavia, de forma resoluta, sem falar uma palavra e sem se importar com as súplicas do filho, com o rosto endurecido se dirigiu ao lugar da cova. Ingua’i, mesmo inconformado com tal decisão do pai, desistiu de segui-lo para evitar incorrer no seu mesmo destino. Deixou o pai sair com a certeza de que não o teria nunca mais encontrado vivo.
Erexim ao chegar ao lugar onde estava enterrada a esposa, com o facão que havia trazido consigo cortou duas pequenas plantas, cortou os galhos, afunilou as extremidades e as fincou de um lado e outro da cova. Com as cordas fixou a rede bem acima da cova e deitou nela. Com os olhos entreabertos ficou a esperar a morte. Ela teria chegado sem falta através da segunda alma-espírito da esposa. Aquela alma que com o passar do tempo já se encontrava no universo azul onde mora Ma’ira (o herói cultural dos Ka’apor) mas que, agora, teria tomado posse do corpo de Erexim para que também ele tivesse o mesmo destino que a esposa.
Passados três dias da saída do pai, Ingua’i tomou coragem e decidiu ir até o lugar onde sua mãe havia sido sepultada e onde certamente teria encontrado sem vida o seu velho pai. Ao chegar ao lugar com bastante cautela e titubeante se manteve a uma certa distância da cova. Ficou parado alguns instantes tentando captar algum movimento ou ruídos provindos do lugar da cova. Nada. Aproximou um pouco mais. Agora, ele já podia enxergar seu pai deitado na rede armada bem acima da cova. Ingua’i não alimentava esperança alguma de encontrá-lo ainda vivo. Tentou chamá-lo, timidamente. Nada. Improvisamente ouviu uma tosse seca que provinha de lá. Seu pai continuava vivo! Com mais coragem o chamou novamente. Nada, ele não respondia. Ingua’i permanecendo no mesmo lugar, parado, insistiu em chamá-lo pela terceira vez. Desta vez Erexim, ao reconhecer a voz do filho, respondeu: ”A alma de sua mãe não me quer com ela. Ela quer que eu fique ainda com vocês, talvez para que eu continue sendo pai e mãe para vocês. Vem para cá e me ajude a desfazer os nós das cordinhas da rede. Voltarei contigo para viver e para realizar os sonhos interrompidos e os trabalhos incompletos de sua mãe”. Os dois, em silêncio, retornaram à aldeia. Ao chegarem ninguém disse nada. Todos sabiam que quando uma pessoa querida morre entre os Ka’apor, o desejo de conviver com ela, para além da morte, era algo natural.

Erexim o havia expressado da forma mais radical. Ele jamais se esqueceu da sua querida esposa. Nos seus gestos, nos seus horários fixos, no lugar de se colocar durante as refeições, na hora de sair para caçar ou para apanhar mandioca na roça, tudo fazia como se ainda ao seu lado estivesse a sua inesquecível esposa. O filho e as pessoas da aldeia ao vê-lo agir daquele jeito diziam: “A finada voltou a viver entre nós no corpo do velho Erexim!”

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