Pensemos por instante na decepção de um filho que não conhece seu pai. Ou na dor inconsolável de quem o perdeu precocemente. Ou na revolta interior daquele que nunca foi reconhecido como ‘filho’ pelo seu pai biológico. Pensemos, agora, na emoção indescritível de um pai que ouve pela primeira vez da boca do seu filhinho a palavra ‘p-a-i’! E sente que naquelas inéditas letrinhas balbuciadas com dificuldade estão contidos sonhos, projetos de vida, relações afetivas, emoções, proteções, e redes de solidariedade inimagináveis...
Hoje, temos a sensação de viver numa sociedade órfã de pai. Há muitos exímios reprodutores, e também padrastos nas fluídas relações conjugais. Temos até supostos ‘pais’ da Pátria amada’! Carecemos, contudo, de pais afetivos, provedores de compaixão e de ternura. Por longos e seguidos séculos deformamos gerações inteiras ao catequizá-las apresentando como modelo não um Deus-Pai, mas um sisudo ‘deus-patrão e fiscal’’. Um Deus entendido como Pai amoroso parecia demasiado perigoso para uma sociedade que era obrigada a viver submissa a reis e rainhas. E a cultivar o temor e o ‘respeito’ ao ditador de turno disfarçado de ‘paizão protetor’. O mais ameaçador parecia ser a ideia de que se Deus era Pai, ‘todos nós’ somos família, com obrigações éticas de nos respeitar, acolher, e proteger reciprocamente. Isto tem sido profundamente alarmante para sociedades alicerçadas em relações sociais em que as prevaricações e os privilégios de uma minoria autoritária deviam ser preservados. Num momento histórico em que muitos defendem a ideia de um pai autoritário, torna-se urgente resgatar o sentido profundo e inovador de Deus como ‘Pai’ tal como Jesus O apresenta nas versões de Mateus e de Lucas.
Parece paradoxal, mas a mais conhecida ‘Oração do Pai Nosso’, não é uma oração. Nem uma reza a ser repetida mecanicamente. Jesus resistiu à ideia de oferecer aos seus seguidores uma oração específica, pelo simples motivo que o ‘Pai já conhece as nossas necessidades antes mesmo de pedir’ (Mt. 6,7-8). O ‘Pai Nosso’ é uma declaração de intenções e compromisso dos seguidores de Jesus com Deus-Pai para transformar uma ‘nação’ numa ‘família planetária solidária’. Com isso, os discípulos-filhos passam a atuar como verdadeiros construtores de um ‘Reinado/Família’ onde quem governa é um pai, e não um déspota! Só um Pai para compreender a depressão de uma filha. Ou para aliviar o sentimento de culpa e de fracasso de um filho. Só um pai para ir à praça pública e gritar contra quem detona os direitos de seus filhos! E que se organiza em redes de famílias para propor ‘políticas públicas’ em favor daqueles filhos que estão sendo dominados e eliminados por outros filhos que não têm consciência de sua pertença à mesma família. Por isso que o contexto do surgimento do ‘Pai Nosso’ não é o Palácio do governador, e nem o templo de Jerusalém, - sinônimos de corrupção e de traição ao plano de Deus, - mas a realidade conflituosa da ação missionária onde as famílias se ajudam e lutam. É nesse cotidiano que construímos relações de afeto e de colaboração. Que podemos ser ‘pais afetivos ’ anunciadores da Boa Nova para aqueles filhinhos órfãos de afeto, de direito, e de esperança.
João no prólogo do seu evangelho nos diz que todos aqueles que acreditam e agem como Jesus lhes foi dado ‘o poder de se tornarem filhos de Deus’. Filiação não é um dado biológico adquirido. É opção consciente. É aderir a uma relação de confiança e de colaboração com um pai que quer o nosso bem. Jesus, também, foi educado a sentir que Deus era Pai absorvendo cotidianamente o jeito amoroso de pessoas próximas que agiam como verdadeiros pais. Aprendeu, progressivamente, no carinho e na compreensão que Deus não podia ser aquele ‘deus vingativo e terrível’ que lhe era apresentado pela religião oficial. Já adulto, Jesus condenou as manipulações dos influentes sacerdotes sobre Deus, e com uma desenvoltura desconcertante ousou chamá-Lo de ‘papai’, tal como faz uma criancinha. Sentiu-se tão profundamente unido a Ele que não teve receio em dizer a Filipe ‘Quem me viu, viu o Pai’ (Jo.14,9). Por isso que podemos dizer que não é Jesus que é igual a Deus, e sim, Deus é como Jesus! Se o Deus invisível pudesse ser visto Ele agiria como Jesus: um pai-pastor compassivo e misericordioso, principalmente com os pequeninos feridos e desgarrados. Mais que isso: para escândalo dos nacionalistas de Israel que tratavam Deus como uma sua ‘propriedade privada’ manipulável, afirmou que Ele é ‘Nosso’! Não de uma elite, nem de uma igreja, e nem de uma nação, mas de todos os seus ‘filhinhos pequeninos’ que O adoram em ‘espírito e verdade’. Que não querem enjaulá-Lo em templos esplendorosos, e que não colocam o seu santo nome em lemas de campanha política para ocultar racismos e intolerâncias. Hoje, queremos deixar ecoar dentro de nós ‘o Espírito do seu Filho que clama ‘Aba’, ó Papai! (Gl. 4,6-7), e viver não mais como escravos, e sim, como ‘filhos livres’. Livres para amar e proteger, como somente um ‘Pai Materno’ sabe fazer.
(Este blogueiro escreve mensalmente no O Jornal do Maranhão, da Arquidiocese de São Luís)
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