sábado, 19 de novembro de 2022

NO BRASIL DE HOJE NEM A PAZ É UM PONTO PACÍFICO - Por Ricardo Alexandre

Há poucos dias, conversando com um amigo pastor, um seguidor de Jesus de Nazaré (sempre importante fazer essa especificação atualmente), ele me dizia com esperança nos olhos que seu grande trabalho para os próximos anos é o que ele chama de "evangelizar os evangélicos", ou seja, levar a libertação de Jesus para quem foi aprisionado pela religião, pelo moralismo e pelas convicções políticas dentro de sua própria igreja. "Só o evangelho de Jesus é o evangelho da paz capaz de unir direita e esquerda", ele disse.

Queria muito ter a esperança daquele homem. O que fui capaz de responder me fez mal diante do meu próprio ceticismo: quem disse que esses evangélicos querem paz? Quem disse que os milhões que se definem como "cristãos-conservadores-de-direita" nas redes sociais querem dividir a mesa com os cristãos que, conforme lhes ensinaram recentemente, sequer devem ser chamados de cristãos? Mais do que a polarização, um dos grandes efeitos deletérios da tensão política dos últimos anos foi a implosão de pontes de diálogo. Faça um exercício de memória: quantas vezes você já se viu em um diálogo como os abaixo?

"Eu li uma reportagem": "Mas a imprensa é toda enviesada";

"Saiu uma pesquisa": "As pesquisas são todas manipuladas";

"Está nos livros de História": "Todos os livros foram escritos pela esquerda";

"Os artistas estão indignados": "Eles têm saudade da mamata da Lei Rouanet";

"Mas está na Bíblia": "Isso aí é leitura de esquerda. Não dá pra ser crente e ser de esquerda";

"Mas foi um ex-professor de Paulo Guedes que disse!": "Você quer que o Brasil vire a Venezuela?"

Essa implosão tem método. É a lógica surgida nas redes sociais, que vivem de nos empurrar cada vez mais para a hiper-segmentação, para uma bolha na qual não haja risco de cruzar o olhar com algo minimamente diferente do nosso próprio reflexo. É assim que as Big Techs vendem publicidade com assertividade máxima e constroem seus impérios. Para que isso aconteça, é preciso que qualquer possibilidade de confronto, de paradoxo, de reflexão, de desvio, seja dinamitada sem misericórdia. É assim que aprendemos a raciocinar, mesmo fora do ambiente digital.

Meu amigo pastor sabe que a espiritualidade cristã é repleta de paradoxos que por 2.000 anos sempre coexistiram em relativa harmonia. "Não amem o mundo nem o que há no mundo" (João 2;15) nunca pareceu excluir o fato de que a igreja deveria ganhar "a simpatia de todo o povo" (Atos 2;47). A ideia de que Deus não nos salva por causa das nossas boas obras (Efésios 2;9) nunca foi empecilho para que os cristãos trabalhassem até o ponto em que as pessoas de fora da igreja "vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês que está nos céus" (Mateus 5;16). Nunca esteve em discussão que a prática religiosa "que o nosso Pai aceita como pura e imaculada" é, em pé de igualdade, manter-se fora da mentalidade corrompida da cultura vigente e "cuidar dos necessitados e desamparados" (Tiago 1;28). Historicamente, alguns cristãos entendiam que a melhor forma de cuidar dos necessitados era pressionar o Estado por políticas públicas de inclusão; outros entendiam que era incentivando a iniciativa privada para "dividir um bolo maior". Óbvio que éramos diferentes uns dos outros, mas ninguém questionava que éramos filhos do mesmo Pai.

Isso na época em que a lógica da Bíblia falava mais alto que a lógica das redes. A unidade pelo "vínculo da paz" (Efésios 4;3) foi trocada pela lógica dos algoritmos: quem não pensa exatamente como eu penso "não é crente, não" - como diz o jargão de um pastor de Instagram. A própria assistência social virou "coisa de esquerda" de quem quer "sustentar vagabundo". A figura do presidiário (na qual Jesus disse que ele próprio seria encontrado, em Mateus 25;36) virou motivo de escárnio contra um dos candidatos à presidência — como se o outro também não tivesse sido preso, nem estivesse em um partido presidido por outro ex-presidiário. A inversão da lógica bíblica é tamanha que hoje uma igreja que em vez de simpatia estimule a repulsa do povo deixou de ser um problema e passou a ser uma espécie de motivo de orgulho, como um sinal narcisístico de fidelidade e intransigência estilo "doa a quem doer". No Brasil de hoje, nem a paz é um ponto pacífico.

Veja os tuítes de grandes formadores de opinião evangélicos, no topo deste artigo. O cantor Davi Sacer mostra um vídeo com cenas da primeira visita da equipe do presidente eleito Lula aos chefes do Judiciário e do Legislativo, em 9 de novembro. Nesse encontro, como foi amplamente noticiado, Rosa Weber presenteou a equipe de transição com cópias da Constituição e Lula prometeu restabelecer o respeito entre os poderes republicanos e pacificar o país. Mas Sacer comentou: "Se alguém acha isso normal, então somos muito diferentes".

No dia seguinte, ele voltou a compartilhar o vídeo com outro comentário, repleto de emocionalismo moral típico dos influenciadores digitais: "Muito nojo". O cantor não se referiu a nada que o tenha desagradado no conteúdo da reunião, mas na existência da reunião em si — presumivelmente, o que Lula imaginava que seria entendido como respeito à liturgia do cargo e civilidade entre os divergentes foi entendido pelo cantor como "velha política", uma prova da corrupção das engrenagens do sistema. Aparentemente, um sistema mais adequado seria aquele em que os poderes se enfrentam, se agridem, ameaçam insubordinação e passam o dia insuflando o povo um contra o outro.

Felippe Valadão é mais um representante da dinastia Valadão que lidera a Igreja Batista Lagoinha. Embora a Bíblia recomende aos crentes que "façam todo o possível para viver em paz com todas as pessoas" (Romanos 12;18), a lógica das redes prega o contrário. Felippe, que é pastor de uma unidade da Lagoinha em Niterói, achou perfeitamente adequado brindar seus seguidores com uma piadinha a respeito de Geraldo Alckmin, que teria sido eleito vice-prefeito em Pindamonhangaba e assumido após a morte do prefeito (o que não é verdade) e vice-governador em São Paulo assumido depois da morte de Mário Covas (o que é verdade). Valadão conclamava: "Vamos manter o pensamento positivo". Diante da péssima repercussão do seu post, ele escreveu que os que discordam dele seriam todos eleitores "do maior corrupto da história", apoiadores da "legalização do aborto, liberação das drogas e ideologia de gênero": "Sua crítica para mim é um alento, só afirma que tudo que eu escrevo faz sentido e eu tô na direção certa". Algumas horas antes, ele já havia usado as redes sociais para dizer que "o Brasil tá chato pra caraca depois dessas eleições".

Para pessoas como Felippe Valadão e Davi Sacer, um país "chato pra caraca" é um país em busca de conciliação, em que a política deixa de ser uma competição de memes e frases de impacto e volta a ser um longo e entediante exercício de diálogo entre adultos com expectativas diferentes a respeito do Brasil.

A Bíblia recomenda paz, mas as redes sociais recomendam emocionalismo moral, violência, escárnio e radicalização. Queria acreditar, como meu amigo pastor, que a oferta de paz que Jesus tem a dar seja mesmo capaz de comover quem está armado até os dentes. Mas, para os religiosos das redes sociais, diálogo e conciliação são sinais de falta de convicção. Como chamar à conversa os que querem silenciar o outro? Como dividir o pão com quem julga que o pão pertence apenas a si? Como abraçar os que estão prestes a esmurrar? Não sei, mas, definitivamente, este é o desafio que está imposto aos homens de boa vontade do Brasil de hoje, dentro e fora das igrejas.


* Ricardo Alexandre é jornalista e escritor, autor do livro 'E a verdade os libertará: reflexões sobre religião, política e bolsonarismo' (Ed. Mundo Cristão)


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