terça-feira, 29 de novembro de 2022

Quem tem medo das mulheres? - Por Massimo Recalcati

 Na base da violência machista contra as mulheres, há sempre a mesma aspiração: arrancar, rasgar, ferir, rejeitar, suprimir a sua liberdade. A justificação ideológica dessa terrível intenção tem como ponto fulcral a reivindicação de uma superioridade ontológica e moral do homem sobre a mulher que encontraria a sua codificação ideológica na leitura dogmática (e distorcida) do texto bíblico. Superioridade ontológica: o corpo da mulher viria daquele masculino - de sua famigerada "costela" - portanto, seria apenas uma expressão secundária e fatalmente inferior. Superioridade moral: a feminilidade encontraria seu símbolo maléfico em Eva, que encarnaria uma tentação pecaminosa capaz de empurrar o ser humano para a loucura da transgressão, para uma liberdade sem juízos que o mergulharia na natureza diabólica e perversa da sexualidade.

Na história secular do Ocidente, essa superioridade ontológica e moral do homem foi veiculada por vários dispositivos repressivos abertamente sexófobos. Em primeiro lugar, aquele da exclusão da mulher da vida da cidade: sem palavra, sem língua, sem nome, sem direitos. Mas de forma mais sorrateira e mais capilar pela via da maternidade como emenda da pecaminosidade feminina. Estratégia de purificação da sensualidade demoníaca de Eva através de sua metamorfose no caráter imaculado da virgem Maria. O Ocidente patriarcal insistiu particularmente neste ponto: o destino iniludível de uma mulher é aquele da maternidade. É, de fato, na identificação da mulher com a mãe, que ele pretendeu resolver o temível problema da excedência anárquica da liberdade da mulher. Nessa perspectiva, o materno configurou-se não apenas como destino biológico necessário da mulher - inscrito na Lei da natureza - mas como negação de sua própria existência. Para muitos homens, ainda hoje, transformar a mulher na mãe de seus filhos é uma forma de exercer, consciente ou inconscientemente, um domínio de apropriação sobre a sua liberdade. Com o inevitável acréscimo de que assim a mulher que se torna toda-mãe efetivamente desaparece como mulher ("autorizando", entre outras coisas, o homem a buscar em outras mulheres a realização de seu desejo).

Esse teorema patriarcal da maternidade como uma emenda da feminilidade na verdade dá o aval à violência do homem contra a mulher. Não é por acaso que muitos homens exercem sua violência quando se deparam com o caráter irredutível da liberdade feminina. Acontece, em particular, quando termina um vínculo de casal. Nessas circunstâncias, o homem abandonado não pretende reconhecer o direito de escolha da mulher. A violência, até o extremo atroz do feminicídio, é então uma forma de tentar ser novamente o senhor da liberdade da mulher, de subjugar brutalmente a independência de seu desejo....Esse é o sadismo que caracteriza a violência masculina, inclusive do ponto de vista clínico: apropriar-se da liberdade da vítima tornando-a um objeto indefeso. Além disso, o paradoxo que foi historicamente determinado consiste no fato de que quanto mais o homem se empenha nessa empreitada de subjugação sádica da liberdade feminina, mais ele é obrigado a verificar o destino fracassado desse projeto, ou seja, reconhecer o caráter indomável da liberdade da mulher. Isso é o que está acontecendo hoje nas ruas do Irã. 

A repressão às mulheres promovida pelo regime patriarcal-religioso dos aiatolás sempre foi exercida no pressuposto da inferioridade ontológica e moral da mulher. Não é por acaso que se entrega a uma verdadeira e própria polícia moral de cunho medievalista a vigilância sobre os corpos das mulheres. Aqui não é apenas a sexualidade que deve ser ocultada pelo véu da repressão, mas é a própria liberdade - da qual a sexualidade é uma expressão fundamental - que é constantemente perseguida. Essa é a raiz última da violência machista contra as mulheres: a liberdade irredutível da mulher aterroriza o poder do patriarcado religioso que a todo custo a deve domar, disciplinar, extirpar como se fosse uma gangrena.

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