Riachos perenes de água cristalina, vigiados por altivas palmeiras, a escorrerem por uma terra arenosa adornada com vistosos buquês de quaresmeiras (Tibouchina candolleana) de um roxo intenso, na rala e verdejante vegetação, parecem anunciar que o verão no cerrado maranhense está a findar. Haviam caído já na segunda metade de outubro as primeiras e tímidas chuvas, dando novo vigor à árida terra. Este é o espaço natural disputado por muitos, mas destinado aos índios Ramkokramekrá e Apanyekrá do Maranhão, mais conhecidos como Canela. Um espaço que lhes havia sido negado à época da demarcação de suas duas terras indígenas, entre o final dos anos 70 e início dos 80. As demarcações contemplavam somente parte do território habitado e usado tradicionalmente pelos Canela. Uma, a terra indígena Porquinhos de 79.520 hectares, onde vivem cerca de 1.000 Apanyekrá; e a outra, a terra indígena Canela–B.Velho, de 125.212 hectares, habitada por mais de 2.300 Ramkokramekrá, no atual município de Fernando Falcão, foram de imediato contestadas pelos índios. Somente no ano de 2.000 um dos dois subgrupos do povo Canela, os Apanyekrá, conseguiram a abertura de um processo no Ministério da Justiça (MJ) para reconhecer os limites originais. Elaborado e finalizado o relatório antropológico, - com levantamento formal dos ocupantes não indígenas, - tudo foi submetido aos procedimentos legais de revisão contemplados pela Lei de Terras Indígenas – Decreto 1.775 de 08/01/1996. O mesmo fizeram os Ramkokramekrá da aldeia Escalvado, um pouco mais tarde. Aos ocupantes não indígenas foi-lhes concedido o prazo legal de três meses para apresentarem eventuais contestações à revisão dos limites propostos pelo relatório antropológico. As contestações apresentadas por várias prefeituras locais, - sempre com as mesmas requentadas argumentações, - foram consideradas improcedentes pelo Supremo Tribunal de Justiça que determinou a sua continuação legal. Em fevereiro de 2011 a empresa SETAG de Goiânia iniciou a demarcação física de Porquinhos conforme o relatório apontava, mas foi violenta e brutalmente barrada por fazendeiros e outras empresas que ocupam ilegalmente o território tradicional dos Canela, incitando também os pequenos agricultores à revolta.
Hoje há uma situação de grave impasse. De um lado a terra indígena Porquinhos já com portaria ministerial demarcatória que aguarda somente uma garantia de proteção por parte da FUNAI aos funcionários da empresa SETAG, já contratada, para finalizar a demarcação. E, do outro, a recente aprovação do relatório antropológico por parte da presidente da Funai, o que permite que se proceda à fase de eventuais contestações (3 meses). Supõe-se que também nesse caso a prefeitura de Fernando Falcão entre com as mesmas argumentações esfarrapadas (inviabilidade econômica do município, ocupação legítima e legal de não índios, possível tragédia social, etc.) Nesse contexto de revisão e correção dos limites originais e tradicionais das terras dos Canela uma constatação objetiva, contudo, é inegável: os índios vêm provando que são os melhores administradores do patrimônio sócio-ambiental daquela parte de cerrado. Em que pesem alguns casos de cumplicidade indígena na venda de madeira, nem de longe isso pode ser comparado com o verdadeiro ‘terricídio’ do cerrado que está em ato atualmente. Concentração de terras, invasões e destruições de chapadas por parte de carvoarias ligadas à siderurgia e a outras empresas vêm ocorrendo maciçamente na região. Um patrimônio que, afinal, pertence à União, ou seja, a mim, a você, aos seus filhos e netos e às futuras gerações. Uma fatia sagrada da criação que ‘nós brasileir@s’ (eu também tenho carteira verde de identidade brasileira!) entregamos em regime usufrutuário aos indígenas porque eles, e somente eles, até agora, nos deram garantias de que sabem mantê-la e protegê-la para o bem-estar de todos. Para que nos lembremos que temos tido um Criador com muito bom gosto. E extremamente generoso com nós humanos, ao nos brindar ainda com quaresmeiras roxas e igarapés de água cristalina. Até quando?
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