Um grupo de índios Ka’apor da terra Alto Turiaçu, no final dos anos 80, me visitaram na cidade de Santa Luzia, num domingo à noite. Chegaram na hora da missa dominical. Deixaram suas trouxas no salão e se aproximaram das janelas da igreja. Assistiram, talvez pela primeira vez, a uma missa. Tagarelavam o tempo todo, e seguravam a duras penas a evidente vontade de sorrir. No final de tudo fui até eles, cumprimentei-os e perguntei o que era toda aquela vontade de conversar e sorrir. Um deles, bem sério, perguntou ‘quem é aquele homem quase nu que tem pregos nas mãos e nos pés e que parece morto’? ‘Jesus’, - respondi, e sumariamente ofereci outros detalhes da vida dele, sem deixar de dizer para eles que depois daquela morte na cruz ele voltou a viver. Ele retrucou, então, - ‘E por que não o não apresentam vivo, então? Você não acha que é mau gosto manter numa casa grande como essa, cheia de gente, um homem morto sabendo que ele está vivo? Afinal, também Ma’ira (herói cultural dos Tupi) morria e voltava a viver, e nós, porém, o lembramos vivo, mesmo que não saibamos mais onde mora, agora!’Jesus crucificado continua sendo também para os Ka’apor do Maranhão um escândalo. Talvez, também para eles, a representação de um vencedor ou de um herói que tenha superado com força e glória os poderes da maldade e da brutalidade fosse muito menos traumático que a exibição pública de um ‘morto brutalizado’ na cruz!
A festa da exaltação da cruz não quer enaltecer um tipo de condenação à morte, a crucificação, nem que seja a de Cristo. Ela quer que os numerosos crucificados de hoje não se sintam abandonados quando fazem a experiência da angústia, da dor e do abandono. Ao olhar para o Crucificado deveriam perceber que a cruz faz parte da vida dos humanos, como o foi para o ‘divino humano’ Jesus, filho de Deus. Não é nem maldição e nem escândalo. É algo real, e tristemente corriqueiro. Real e corriqueiro como o é a brutalidade de quantos continuam a matar, dominar, trucidar, crucificar. Algo do qual não podemos fugir, esconder ou maquiar. A cruz e, afinal, algo iniludível. Contemplar o crucificado é contemplar e encarar com firmeza também o poder da crueldade humana na vida de tantas pessoas, mas para nos imobilizar. Ao contrário, para que seja força para combater tantos ‘crucificadores’. Inspiração para nos colocar ao lado dos crucificados da nossa sociedade. Ousadia para extrair todos os dias todos os pregos que mantêm no cativeiro da humilhação e da morte homens e mulheres da nossa humanidade. E, principalmente, fé absoluta de que a cruz não representa o ponto final dos humanos. Mas que ela pode ser vencida e destruída, e cabe a nós fazer isto. Colocar representações de ‘vencedores imaginários ou míticos’ nos lugares públicos e nas nossas igrejas nem sempre nos ajudam a assumir a responsabilidade de libertar tantos irmãos e irmãs da condenação à morte que está sendo decretada e executada todos dias nas nossas cidades!
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