terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Conjuntura - Uma análise - Por Pe. Flávio Lazzarin

 “A Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho” (Ailton Krenak)

A primeira sensação que sinto diante das atuais conjunturas é um sentimento de profunda tristeza, que chega a carregar lagrimas, diante do renovado sofrimento dos pobres, atingidos pela violência ecocida e genocida do sistema-mundo. Apesar das estratégicas omissões da mídia - cito como exemplos Congo, Eritreia e Moçambique, entre inúmeros outros casos - diariamente assistimos às dores de quem não pode fugir da guerra, fome, estupros, morte. Trágicas marcas do colonialismo globalizado. E quando conseguem fugir, muitos acabam morrendo afogados no Mar Mediterrâneo ou nos campos de concentração líbicos.

O segundo sentimento é uma dupla indignação: com relação aos delinquentes que governam o mundo, mas também com relação aqueles que afirmam falaciosamente a sua inimizade ao sistema. De fato, o esfacelo do mundo ocidental acontece à revelia da lógica binária que supostamente deveria marcar a distinção entre direita e esquerda. Valha como exemplo paradigmático o que faz, amparado pelas omissões da mídia, o partido de esquerda que, numa coalizão, governa a Itália:  junto com os outros governos europeus, paga Líbia, Grécia e Turquia para barrar em centros de confinamento os pobres que fogem da guerra e da carestia, evitando a chegada destes migrantes na Europa. Mas, obviamente e sem se mancar, os esquerdistas continuam se apresentando como os paladinos dos direitos humanos.

Estás começando de longe, alguém poderia objetar, mas a nossa Abya Yala está contemplada nos meus sentimentos de tristeza. É a situação dos negros, dos pobres da cidade e do campo, dos indígenas, das mulheres, dos 170.000 mortos da pandemia, das lutas territoriais que não encontram êxitos... O que está acontecendo no Planeta, e também aqui, é o fim do mundo a que estávamos acostumados. Também aqui acabou o sistema político da modernidade; acabaram as presunções representativas da democracia parlamentar; acabou a expectativa de poder mudar a sociedade e o mundo com os processos eleitorais. Acabou, mas a maioria, também entre nós, insiste em repetir o passado, pensando assim de poder salvar o cadáver há tempo apodrecido do jogo político dominante. É o que aconteceu também nesta última farsa eleitoral.  

O que me deixou perplexo e assustado foi o regresso explícito, estatisticamente significativo, de tantos e tantas que pertencem ao nosso meio, ligado às lutas descolonizadoras e anticoloniais das identidades territoriais, á “festa da democracia”.  Quantos irmãos e amigos se vincularam, numa neurótica compulsão à repetição, ás campanhas eleitorais da chamada esquerda, quando também aqui, poderia resultar cada vez mais complicado distinguir o que de direita ou de esquerda. Sobretudo da esquerda “urbana”, que excluiu da sua pauta, junto com os desafios da crise civilizacional que estamos atravessando, também os anseios e as reivindicações dos povos do campo. Mais um exemplo paradigmático é o que acontece no Maranhão em que alguém que, casado com equivocadas políticas de desenvolvimento, ignora de fato as demandas de quilombolas, indígenas e comunidades tradicionais pode-se contrabandear como esquerdista e representante dos interesses da classe trabalhadora. Mas, se orgulha de ter uma Secretaria de Direitos Humanos e de flertar com os capitães do mato, que acreditam que seja possível negociar pautas periféricas e irrelevantes, sem pagar, primeiro ou depois, o preço da traição. E não estou falando só de Alcântara ou do Cajueiro, mas de todo o Estado atingido pelos projetos do Programa MATOPIBA.

Faz tempo que seria necessário polarizar contra a polarização espetacular e oportunista. O novo polo não é ilusão, porque, de fato, existem, há décadas, movimentos que agem e que pensam a partir da crise civilizacional do Antropoceno e tentam lutas a favor de novas matrizes energéticas, para substituir petróleo, hidrocarbonetos, grandes e pequenas hidroelétricas e falsas energias limpas. São movimentos minoritários que si juntam às lutas contra o agronegócio e a mineração desenfreada e sem controle. Aqui estão os pobres e os povos, que sempre perderam as eleições! Reduzir a análise das conjunturas a considerações sobre sucessos e derrotas eleitorais é aceitar de se conformar à navegação de pequena cabotagem, quando, por lutas e reflexões, já podíamos ter alcançado o mar aberto. 

Precisamos polarizar contra a falsa polarização eleitoreira, também porque, faz tempo que as conjunturas políticas que permitiam certa relação entre Estado e as demandas dos movimentos indígenas e camponeses, esgotaram-se irremediavelmente. Vejam bem: também na estação do lulo-dilmismo, a Reforma Agrária e as reivindicações indígenas viraram cinza; até 2015 distribuíram migalhas; de 2015 para cá, nem as migalhas. E. hoje em dia, a mediação não tem nem existência metafisica. O que temos e continuaremos tendo é o chumbo grosso da elite escravocrata e colonizadora do Brasil.

  Alguém poderia comentar quanto exposto me acusando de exageros apocalípticos e de radicalidade ilusória e inconsequente, passando a me perguntar se ainda nesta análise sombria possa ter espaço um mínimo de esperança.  Respondo que tem esperança e que tenho esperança. Seria, com efeito, traiçoeira uma análise das conjunturas que se limitasse à listagem do negativo, ignorando os desafios e se recusando de apontar rumos e remos.

Esperança:

- de uma política gestada na planície e non no planalto;

- das retomadas territoriais, xamânicas, místicas, culturais dos povos indígenas, dos quilombolas, das comunidades tradicionais;

- na construção de processos decoloniais e anticoloniais com organizações, articulações e mobilizações;

- na relação com a natureza em termos de fraternidade e sororidade;

- na radicalização anti-hierárquica da democracia a partir da construção da fraternidade e sororidade;

- em processos de aquilombamento no campo e na cidade, construindo relativas autonomias para reorganizar o mercado e obrigar o Estado à obediência aos territórios livres.

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